Recordar é viver
Nesses dias de Carnaval, é como se o mundo parasse. Como se uma alegria diferente tomasse conta do coração de todos e de cada um. “Carnaval é a alegria popular”, disse Dom Hélder Câmara em uma de suas crônicas na Rádio Olinda (em 1 de fevereiro de 1975). É tempo de viver intensamente o presente, sem remorsos ou ilusões. De sentir o gosto bom do futuro, na esperança de novos encontros e dias melhores que virão. Mas, também, de voltar ao passado. “Recordar é viver”, já dizia aquela marchinha de Aldacir Louro, Aloysio Marins e Macedo. E é nessa volta ao passado que mantemos a tradição, preservando elementos importantes de nossa cultura – que fazem, de nosso Carnaval, único e muito especial.
Tudo começa com o Galo da Madrugada – maior bloco de Carnaval do mundo, segundo o Guinness Book (em 1995). Não só ele, muitos outros blocos e troças desfilaram nas ruas. Especialmente em Olinda. Subindo e descendo ladeira, democraticamente, sem a segregação de mortalhas e abadás. Também o Maracatu Cabra Alada – do gênio, professor e fundador do Porto Digital, Silvio Meira. Segundo ele, “É um momento de vida. De humildade. E de muita felicidade”.
Maracatu, só para lembrar, pode ser de Baque Virado (Maracatu Nação) e de Baque Solto (Maracatu Rural). Sem esquecer, nas segundas-feiras, a Noite dos Tambores Silenciosos, no Pátio do Terço. Ou o Papangus de Bezerros. A lista vai longe. O ritmo predominante do nosso Carnaval, como toda gente sabe, é o Frevo. “Pernambuco tem uma dança/ Que nenhuma terra tem/ Quando a gente entra na dança/ Não se lembra de ninguém” – assim escreveu Capiba (É frevo, meu bem). O nome vem de frever, corruptela de ferver, para designar aquela algazarra das ruas. Lembrando a fervura de uma cidade em ebulição; ou a fervura do sangue quente do pernambucano; ou a fervura doce do tacho de mel de nossos engenhos de açúcar.
O ritmo nasceu pelas ruas do bairro de São José, no Recife. E meio por acaso. É que havia, no início do século passado, grande rivalidade entre as duas mais famosas bandas militares da cidade: a do 4º Batalhão de Artilharia – conhecida como “o Quarto”; e a da Guarda Nacional – “Espanha”, por ter como regente o músico espanhol Pedro Garrido. Nos desfiles, essas bandas saiam pelas ruas tocando dobrados, marchas e polcas, acompanhadas por capoeiristas.
Para proteger seus músicos. Disfarçados, claro; que praticar capoeira, por essa época, era crime. Aos poucos, os capoeiristas foram trocando bengalas ou cacetes (da duríssima madeira de quiri) por sombrinhas que balançavam ao ritmo da música. Trocaram também golpes de sua luta por piruetas – “passos”, assim se passou a dizer. Hoje, são mais de 120 catalogados, entre eles: abanando, caindo-nas-molas, canguru, dobradiça, ferrolho, locomotiva, parafuso (ou saca-rolha), pernada, ponta de pé e calcanhar, Saci-Pererê, tesoura (cruzada, no ar, passando a sombrinha). Como ensina Câmara Cascudo, “no mar do frevo, cada peixinho nada de seu jeito”.
Compreendendo a importância desse ritmo para nossa cultura, ele foi escolhido patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco (em 2012). E a Prefeitura do Recife inaugurou o Paço do Frevo – um edifício de quatro andares na Praça do Arsenal, bairro do Recife Antigo. Com exposições (algumas permanentes outras temporárias), centro de documentação, curso da dança, estúdios de gravação.
Importante lembrar, também, a culinária dessa época. Que depende da disposição de cada um. Disso já falamos em outros Carnavais. Em qualquer caso, deve-se preservar a tradição de comer filhós – prato típico do Carnaval nordestino. “Carnaval sem filhós não é Carnaval. E filhós sem Carnaval não tem sabor”, dizia mestre Gilberto Freyre (em Dona Sinhá e o filho padre). O nome vem do latim foliolum (“bolo folhado”). O doce foi introduzido, no Brasil, pelo colonizador português. Substituindo o açúcar e a canela da receita original por uma calda rala feita com açúcar. Sempre servidos em compoteiras de vidro ou de cristal, como uma espécie de reverência aos tempos coloniais.
Se é verdade que não existe pecado do lado de baixo do Equador, então tudo valeu a pena. “Peca-se muito no Carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus: se excessos, aqui e ali, cometidos por foliões, ou farisaísmo e falta de caridade por parte de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o Carnaval. Dom Hélder até aconselhava: “Brinque, meu povo querido !”. Lembrando do sabor do filhós, sem a culpa de estar praticando o pecado mortal da gula. Um pecado agradável e doce, como deveriam ser todos os pecados. E que Deus nos perdoe.



