Minissérie sueca “Domo de Vidro” explora trauma e sequestro em trama fria e tensa
Produção aposta em clima introspectivo e estrutura fragmentada para conduzir investigação emocional
Em “Domo de Vidro”, minissérie sueca da Netflix criada por Camilla Läckberg, o maior mistério talvez não esteja no “quem foi”, mas no “o que restou”. A trama gira em torno de Lejla Ness (Léonie Vincent), criminologista marcada por um sequestro na infância e que retorna à vila natal, Granås, após a morte da mãe adotiva.
O desaparecimento recente de uma menina revive o pior de seu passado e o da própria comunidade.
O roteiro, assinado por Amanda Högberg e Axel Stjärne, escapa das fórmulas fáceis do whodunit. Em vez de apressar a resolução, a série opta por desconstruir, aos poucos, a mente da protagonista. Lejla é uma mulher em ruínas que tenta se manter funcional, dividida entre o instinto de investigadora e a fragilidade emocional que a engole a cada nova pista.
O foco é menos o crime em si e mais o que ele deixou para trás: o silêncio, a vergonha, os lapsos de memória e os vínculos quebrados.
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Nesse ponto, “Domo de Vidro” funciona. A direção de Henrik Björn e Lisa Farzaneh entende que Granås precisa ser mais do que um cenário bucólico. A vila coberta de neve, emoldurada por uma fotografia cinzenta e sufocante, parece carregar o peso de todas as histórias não contadas. É um lugar onde a frieza não é só climática, ela escorre pelas paredes das casas, pelos olhares dos vizinhos e pelos diálogos dos moradores.
Suspense escandinavo
A montagem intercala passado e presente com habilidade. Os flashbacks sugerem mais do que explicam, mantendo o público sempre em alerta. Há um esforço constante para que nada pareça confiável: nem as pistas, nem as memórias e sonhos de Lejla, nem os rostos familiares que agora reaparecem com intenções opacas. E, como todo bom suspense escandinavo, há suspeitos de sobra, todos com algum segredo mal resolvido.
No entanto, para uma série que se apoia tanto na densidade emocional da protagonista, a atuação de Léonie Vincent acaba sendo um ponto de tensão, não no bom sentido. A atriz entrega uma composição contida, que por vezes beira a apatia.
Sua Lejla tem momentos de fragilidade genuína, principalmente nos confrontos com o pai adotivo (vivido com sobriedade por Johan Hedenberg), mas em outras cenas cruciais, especialmente nas explosões emocionais ou momentos de pânico, a performance parece hesitante, como se a personagem não soubesse gritar ou calar.
Não é uma atuação ruim, há um esforço claro de manter a personagem em estado de contenção, mas falta à Vincent a capacidade de traduzir as rachaduras internas em algo mais intenso na tela.
Trauma como ferramenta narrativa
Ainda assim, “Domo de Vidro” consegue amarrar sua narrativa com eficiência até certo ponto. O problema é a reta final, que exige do espectador uma boa dose de boa vontade para aceitar alguns atalhos dramáticos e revelações pouco orgânicas.
Há resoluções que surgem com uma rapidez desconcertante e outras que parecem fabricadas mais para causar impacto do que para respeitar a lógica interna da história.
Mas o saldo é positivo. Ao transformar trauma em ferramenta narrativa e subjetividade do ponto de vista, a série constrói uma experiência mais atmosférica do que reveladora, mais sensorial do que explicativa.
E nesse jogo de fragmentos, onde as cicatrizes são mais visíveis do que os culpados, “Domo de Vidro” cumpre o que propõe: uma história sobre dor, silêncio e as rachaduras que o tempo não cura, apenas cobre com neve.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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