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LITERATURA

Adélia Prado faz 90 anos com comemoração discreta e livro novo: "Já estou em festa por viver tanto"

Maior poeta brasileira viva lança obra de inéditos e participa de coletânea com autoras de diferentes gerações

Adélia Prado celebra 90 anosAdélia Prado celebra 90 anos - Foto: TV Cultura/Reprodução

Entre os seus 89 e 90 anos, completados hoje, Adélia Prado deu uma espécie de volta olímpica literária. Proclamada a maior poeta brasileira viva, a mineira aproveitou o reconhecimento conquistado em 2024, quando recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e o Camões, mais importante láurea das letras lusófonas. Em setembro de 2025, publicou “O Jardim das Oliveiras” (Record), seu primeiro livro inédito em 12 anos. Em paralelo, o Grupo Record reeditou todas as outras oito coletâneas poéticas da autora, da estreia “Bagagem” (1976) a “Miserere” (2013).

A consagração não mudou a rotina da poeta, conhecida pelo diálogo entre o sagrado e o cotidiano, o erotismo e a religiosidade, o desejo terrestre e a fé cristã. "Claro que (todo o reconhecimento) foi uma alegria", diz a autora, em entrevista por aplicativo de mensagens instantâneas, mediada pela filha, Ana Prado. "Mas a vida cotidiana não se altera".

Como exemplo, Adélia cita um poema que, segundo ela, “responde à pergunta de maneira completa”. Trata-se de “Fluência”, da coletânea “Coração disparado”, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria poesia em 1978. “Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus,/ não perdi a poesia”, apontam os primeiros versos, marcando a distância entre o fazer poético oficial, das publicações e dos prêmios, e “o antigo e intenso desejar de um verso”. “O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa./ Como antes, graças a Deus”, finaliza.
 

O novo livro de Adélia retoma a sua conhecida tensão entre a busca por transcendência e a existência mundana, agora filtrada pelas nove décadas de vida e a consciência da finitude. O Jardim das Oliveiras do título é uma referência ao Getsêmani, lugar de angústia e entrega onde Jesus Cristo se retira para rezar após a Última Ceia.

"No meu caso, Deus é a suprema poesia", explica Adélia. "Só posso falar de mim, mas sei que as manifestações do divino têm várias faces. Espero que neste livro os leitores encontrem a alegria da esperança".

Brincando com a morte

Nos mais de cem poemas da coletânea, a poeta nascida em Divinópolis, área metropolitana de Belo Horizonte, volta-se para o passado. Contempla tanto a infância quanto a maturidade, com sua “memória forjada em pó”. "A recordação é o motor da criação", define Adélia. "É o que sempre foi".

Recolhido em Getsêmani, Jesus tinha consciência de que seria traído por Judas. Mesmo sofrendo, submeteu-se ao seu destino. A poeta, por sua vez, conforma-se com a inflexibilidade do tempo. Diversos poemas de “O Jardim das Oliveiras” brincam com o envelhecimento e a morte. Tamanho desprendimento, porém, só se torna possível quando ela “mata o próprio ego”.

"Fora isso esperneio como um bebê que não quer largar o brinquedo", confessa. Talvez para manter o ego descansado, a celebração de seus 90 anos hoje deverá ser discreta. "Ficarei em casa com a família, mas meu pedido é que passemos sem maiores festividades! Já estou em festa por viver tanto!".

Ainda que “O Jardim das Oliveiras” marque o retorno oficial de Adélia, a autora já havia ressurgido em agosto nas livrarias com a coletânea “13 mulheres contemporâneas, 13 poemas cada”. O livro, que promove o legado de Adélia e atesta sua influência na produção atual, reúne poemas de 13 autoras de diferentes etnias e regiões do país, cada uma abordando sua realidade. Adélia havia sido convidada para organizar a edição, mas preferiu participar como autora, ainda que com poemas antigos. Ela enviou alguns de seus clássicos, como “Bairro”, sobre o rapaz de crucifixo e cordão de ouro que esgravata o “coração de cadela” da poeta enquanto palita os dentes.

"O livro traz poetas de todas as gerações de 1930 até a atualidade, com a exceção da década de 1940", diz Aaron Salles, idealizador do projeto. "Me impressionou como Adélia Prado é uma referência para diversas delas, o que foi uma feliz descoberta. A poesia de Adélia provavelmente contribuiu muito para que o modernismo sobrevivesse aos dias atuais na poesia brasileira".

Contemporânea
Ao lado de nomes como Sara Kali (30 anos), Renata Machado Tupinambá (36), Érica Zingano (45) e Paula Máiran (58), Adélia é apresentada como uma poeta “contemporânea”. Enquanto vozes mais jovens reafirmam um feminismo mais incisivo (“ele não vai te bater/ duas vezes se/ depois da primeira/ as mãos/ foram decepadas”, escreve a paulistana Layla de Guadalupe, de 37 anos, em “Rotina doméstica”), a poesia da veterana reflete o universo de uma mulher de seu tempo.

Em “Dolores”, ela deseja “a sorte comum das mulheres nos tanques”, das anônimas que “não recusam casamento” e “sustentam os pilares do mundo”. “Casamento” encontra a potência escondida na vida conjugal: marido e mulher limpam um peixe na cozinha, quando um roçar de cotovelos reacende a faísca da paixão (“Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva”, conclui, provocante). “Diva” engrandece a amiga cansada demais para o teatro após desmanchar em rosca 15 quilos de farinha.

Nem todas as leituras contemporâneas apreciam a visão de mundo da autora. Organizadora do livro, a poeta Márcia Mura lembra que a poesia de Adélia já foi simplificada à “vida vidinha” da mulher submissa e convencional. Também teria sido considerada “beata demais para ser feminista” e criticada pela centralidade que confere ao amor e ao casamento.

"Apenas o fato de Adélia ter começado a escrever num período histórico em que não havia espaço para as mulheres se expressarem já foi, por si só, um encorajamento para que outras viessem a escrever", diz Mura. "Ao meu ver, ela é ainda mais importante hoje porque é uma mulher escritora que teve coragem de escrever e assumir a sua maneira de viver o feminino, o seu mundo, o seu espaço íntimo e doméstico".

Na cabeceira
Salles Torres conta que potenciais colaboradoras da coletânea questionaram a homenagem à veterana poeta. "Me deparei com a inusitada situação de convidar poetas feministas radicais que insinuaram que a autora pertenceria à extrema direita e que seria antifeminista", diz ele.

Para evitar conflitos também do lado de Adélia, Salles Torres explicitou mais de uma vez a participação de poetas de diversas orientações sexuais no projeto. O retorno que recebi é que Adélia não se sente desconfortável em absoluto, pois ela mesma lida de maneira aberta com todos esses temas em seu próprio trabalho", detalha.

Segundo Adélia, a coletânea encontra-se em sua cabeceira. "Ainda não tive tempo de ler com o cuidado que merece, mas estou extremamente feliz de me juntar a outra vozes femininas tão diversas", disse ao Globo. "Me senti honrada de estar ao lado deste coro de mulheres poetas".

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