Balanço da Flip 2025: festa lotada, estrelada e engajada
Com público 10% maior que no ano anterior, flip 2025 transforma em popstars autores como Valter Hugo Mãe e Rosa Montero
Esconder-se debaixo de um boné e andar com os olhos no chão para não tropeçar nas pedras não adiantou. Na última quinta-feira, o Globo flagrou o escritor português Valter Hugo Mãe, que tentava ser discreto, sendo parado pelo público nas ruas de Paraty para tirar foto e dar autógrafo. Era só o começo.
Na sexta-feira, o autor de “O filho de mil homens” se recolheu às nove da noite, tamanho era o cansaço após um dia inteiro atendendo aos fãs.
Nesta 23ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que terminou ontem, renovou-se a tradição de transformar escritores em popstars — o que já se esperava desde o anúncio de queridinhos dos brasileiros, como Mãe (cuja participação na festa teve o apoio da Netflix), a espanhola Rosa Montero (que assinou livros até tarde na noite no sábado) e o italiano Sandro Veronesi ( autor do best-seller “O colibri”).
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A programação assinada pela curadora Ana Lima Cecilio cumpriu o que havia se proposto: promover o encontro entre escritores populares e seu público (10% maior que o de 2024), aproveitar a homenagem a Paulo Leminski (1944-1989) para celebrar a poesia e debater temas urgentes.
Mais uma vez, ficou claro o quanto a festa depende do carisma dos autores. Apresentado ao Brasil pela Flip de 2011, Mãe arrancou risos da plateia ao zombar da própria aparência.
Veronesi, que já vendeu mais de 30 mil livros no país, mostrou que podia ter segurado uma mesa sozinho (ele dividiu o palco com Pedro Guerra). O sambista e escritor Nei Lopes entrou no palco sob aplausos calorosos e encheu a plateia de otimismo: “Daqui a pouco o Brasil vai dar jeito”.
Uma das autoras mais vendidas desta edição, a francesa Neige Sinno impactou o público com seu relato de violência sexual na infância e se tornou a revelação do evento.
A maioria das mesas literárias funcionou. A que reuniu as poetas Alice Ruiz (ex-mulher de Leminski), Marília Garcia e Claudia Roquette-Pinto animou o público na manhã de sexta-feira. Ruiz até brincou que não estava acostumada “a vivenciar essa situação de Madonna”.
Explicitamente política
No sábado, as escritoras Dolores Reyes (argentina) e Dahlia de la Cerda (mexicana) foram aplaudidas do início ao fim da mesa “Ser mulher na América Latina” — a primeira conquistou o público com jeito expansivo e a segunda com sua fala tranquila e contundente.
As duas, cujas obras abordam as violências sofridas pelas mulheres, falaram sobre feminicídio, aborto e solidariedade, além de criticarem a mesmice da literatura dos homens. A mesa das latinas ilustrou uma estratégia usada pela curadoria desde a última Flip: promover discussões políticas a partir de obras literárias de inegável qualidade.
Aliás, fazia tempo que não havia uma Flip tão explicitamente política. A curadoria separou a sexta-feira para debater o que está na ordem do dia.
Ao meio-dia, o jornalista Tiago Rogero e historiadora Ynaê Lopes dos Santos lançaram um olhar afro-centrado à História brasileira mostrando como o racismo foi fundamental na construção do país — a mediadora Juliana Borges conseguiu até trazer Leminski para conversa sobre miscigenação (o poeta se definia como “afro-polaco”).
Na mesa das 17h, o historiador israelense Ilan Pappe deu uma aula sobre o conflito na Palestina: ele afirma que seu país promove limpeza étnica. Pappe disse que a Flip foi pressionada para que a palestra dele fosse cancelada — para entrar no Auditório da Matriz, o público passou por revista e um detector de metais.
Diretor artístico e cultural da festa, Mauro Munhoz disse que a presença dos equipamentos de segurança foi uma indicação das autoridades, assim como na mesa da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva:
— Foi uma sugestão que veio do Estado brasileiro, da Polícia Federal, e a gente achou bem-vinda. Indicaram que, nesse momento, poderia acontecer alguma coisa ruim. A gente viu o que aconteceu com o Salman Rushdie. Acho que foi uma atitude responsável acolher essa decisão.
‘Pressões elegantes’
Munhoz, no entanto, procurou contemporizar as pressões sofridas pela organização da Festa quando o nome de Pappe foi anunciado:
— As pressões que a gente sofreu foram muito elegantes. Impressionantemente elegantes e civilizadas. Foram sugestões: uma sugestão de se mudar um mediador, uma sugestão de que, se há um lado, teria que haver o outro. A Flip não é um simpósio, nem é um espaço de representação de Estado. Não tem nenhuma obrigação de dar espaço para os dois lados.
A mesa com Marina Silva coroou a sexta-feira política. O público se levantou algumas vezes para aplaudir a ministra, que recordou sua trajetória e comentou o afrouxamento das leis ambientais e os desafios da COP, a ser realizada em Belém, em novembro.
A mesa rendeu um dos momentos mais emocionantes da Flip: Alessandra Sampaio, viúva do jornalista Dom Phillips, assassinado em 2023, veio ao palco para presentear Marina com o livro póstumo do marido: “Como salvar a Amazônia”.
O discurso da curadora Ana Lima Cecilio para apresentar Pappe e Marina, diretamente político, destoou da neutralidade que a Flip procurava manter desde seu início, mesmo quando abria espaço para temas do noticiário.
Ana disse que a palestra sobre a Palestina foi a decisão mais importante da curadoria e abriu a mesa de Marina lembrando de ambientalistas assassinados nas últimas décadas e indígenas mortos na pandemia “por uma política de Estado que a gente espera que em breve seja julgada por genocídio”, referindo-se ao governo Jair Bolsonaro.
As mesas “engajadas” estiveram entre as mais aplaudidas e lotadas, indicando que o público gostou de ver a Flip se posicionando.
Entretenimento noturno
A política ultrapassou os palcos principais. Na programação paralela (maior do que nunca, com 35 casas parceiras), passaram autoridades da República como a ministra da Gestão do governo Lula Esther Dweck e a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármem Lúcia.
Aliás, foi uma certa tendência a realização de mesas no meio da rua, às vezes devido ao excesso de público, como a de Adriana Calcanhotto na Casa República, na sexta.
A faixa das 21h horas também ganhou uma cara própria nesta Flip: para esse horário, a curadoria escalou autores que sabem manejar a pena da galhofa. Um bom exemplo: o marfinense GauZ’ (que dividiu o palco com o franco-ruandês Gaël Faye) tem um quê de showman. O Centro Histórico se também se manteve cheio no fim da noite para acompanhar as apresentações de Gregorio Duvivier, na sexta, e o encontro do linguista Caetano Galindo e do humorista português Ricardo Araújo Pereira, no qual também não faltou bom humor.
Uma das mesas menos empolgantes da Flip acabou sendo a de abertura, na qual Arnaldo Antunes compartilhou suas memórias com o autor homenageado. O ex-titã tinha ótimas histórias para contar, conhece a obra de Leminski e claramente havia se preparado (subiu ao palco cheio de papéis), mas sua fala às vezes parecia improvisada, o que prejudicou o ritmo da palestra. Talvez a mesa tivesse fluido melhor com um mediador.
Sucesso e desafios
A 23ª Flip também marcou a volta do evento ao inverno. Devido a atrasos de calendário provocados pela pandemia, as três últimas edições foram realizadas em novembro (2022 e 2023) e outubro (2024). O excesso de calor testou até a infraestrutura da cidade (em 2023, houve apagão).
Por outro lado, no início da semana passada, a maré esteve incomumente alta e alagou ruas para além do Centro Histórico, o que assustou quem chegava à cidade. A partir de quinta-feira, no entanto, o fenômeno não se repetiu mais e o tempo permaneceu firme todos os dias, com calor durante o dia e noites frias.
Desde o começo da festa, dava para ver que a cidade estava bem mais cheia que em edições anteriores. Era tanta gente que, entre sexta-feira e sábado, o sinal de internet móvel estava periclitante no Centro Histórico. No sábado, a organização da Flip informou que o público já era 10% maior que em 2024: 34 mil pessoas participaram do evento. A lotação levanta mais uma vez o debate sobre a capacidade limitada de Paraty receber eventos de massa.
— Paraty ainda não conseguiu nem fazer a ação número 1 para o turismo sustentável: o saneamento básico — disse Munhoz. – Qualquer cidade que vive com mais de 40% da sua receita baseada no turismo gera problemas graves para o meio ambiente, principalmente para o meio humano e cultural. Não há separação entre essas duas coisas.
Este ano, a Flip também se reconciliou com as editoras independentes. Em 2022, foi criada a Praça Aberta, no Areal do Taquari, onde as independentes montam seus estandes. No ano passado, porém, os editores reclamaram da localização da Praça Aberta, afastada das ruas movimentadas do Centro Histórico, depois de uma feira de economia criativa, o que, segundo os participantes, prejudicou o movimento e deu prejuízo.
Desta vez, a Praça foi montada numa localização mais estratégica e a iluminação foi reforçada (outra demanda do ano passado).
Editores ouvidos pelo Globo afirmaram que as mudanças foram resultado do “motim” realizado no ano passado. Em 2025, disseram os independentes, houve mais diálogo com a organização, que foi mais transparente e cumpriu o que havia sido acordado.

