Boemia acesa da rua
O recife da prostituição já não é o mesmo, está em crise, como se vê pelo movimento fraco dos inferninhos
À noite, todos os gatos são pardos, qualquer música dança, toda puta se come. No meio do Largo, a aglomeração vai se formando a álcool e melodias. São 19h de uma sexta-feira quente, a igreja está escura, apagada ao fundo do cenário, e os postes iluminam apenas a boemia que começa agora e emendará sábado e domingo. Atendendo a um pedido de três cervejas e dois espetinhos, Norminha rebola pela praça. No sobrado de dois andares em frente, lê-se "alugam-se quartos" - num Português correto a oferecer guarita naquele imóvel que, dizem, sempre serviu mesmo de pensionato. Norminha anda de um lado para o outro, atendendo a toda mão que se levanta. Veste um short tão justo que desafia a lei da física. Trabalha ali todo santo dia, exceto na segunda, quando a maioria está cansada demais para sair de casa.
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Num dos quartos do pensionato, há 20 anos vive dona Rozilda, uma perna amputada, solidão e diabetes. "Peguei uma bactéria de rato, mas o que me causou a amputação foi o cigarro. Sabe por que, minha filha? Porque quando o médico disse que eu poderia perder a perna, ao invés de três, passei a fumar quatro maços, todo santo dia". Não podia prestar, dona Rozilda. "Não, não podia", concorda, apontando para a perna direita, vaga do joelho pra baixo. Aproveita os ouvidos e descamba a falar, diz que perdeu o filho rapaz há quatro anos, "acidente de moto, um horror". "Eu peguei um dinheiro bom, quando ele morreu. Foram R$ 13 mil, do seguro DPVAT, e ia dar para colocar uma prótese". As circunstâncias foram levando o dinheiro - primeiro a ex-companheira dele, depois o advogado e, por fim, a doença do neto. "Ele levou uma pancada que pedrou os rins, ficou mijando sangue. Mas foi bom que ele se tratou no particular", conta, resignada. Para descer do quarto no primeiro andar do pensionato, dona Rozilda se arrasta pelas escadas. É o jeito.
Noutras ruas, a noite vai se adensando e outros personagens tipicamente soturnos aparecem. Próximo dali, debaixo da luz fraca de um poste, um homem dita: "aqui é assim, dinheiro na mão, calcinha no chão". Mas o Recife da prostituição já não é o mesmo, também está em crise. Na porta de cada inferninho que passa, as putas conversam amenidades. "Oxe, lá vem a outra", aponta uma para a colega que vem rebolando pela calçada, vestindo uma peça que não se pode definir, algo entre uma calcinha comportada e um shortinho minúsculo. "Como tá o movimento, nêga?", pergunta a terceira na esperança de não ouvir o que já sabe. "Uma bosta", enterra a que chega.
Uma volta no quarteirão e o carro para de frente para o Anne Drink Bar, uma das muitas casas que já existiram ali pelas proximidades da rua da Concórdia. Fachada verde e mais conversa de comadres na porta. Lá dentro, um ambiente escuro, meio úmido, e tão vazio quanto as camas das cinco quengas paradas na calçada. "Meu nome é Juliana, tenho 23 anos", aproxima-se uma moreninha de olhos verdes, bem vivos. Minutos de conversa depois, ela vai tirando a camuflagem. "Menina, meu nome mesmo é Ana. Eu mudo para evitar que algum cliente me reconheça na rua e grite: ô, Juliana! Se isso acontecer, eu digo que não conheço e saio fora". E meio convencimento depois, ela topa posar para umas fotos, contracenando com dois clientes fictícios, que era o que tinha naquela noite, e umas mesas de plástico. E com aval do patrão: "vai, mas solta esse 'pixaim'".
