Câmeras apontadas para o racismo
Estreia do filme “Corra!”, em cartaz no Recife, e da série “Cara gente branca”, disponível no catálogo da Netflix, expõem a necessidade de discutir o preconceito
Questões urgentes e delicadas da sociedade podem funcionar como combustível para a expressão artística. O audiovisual tem o potencial de refletir sobre temas complexos, assuntos que através da ficção ou do documentário podem gerar debates com diferentes perspectivas. As estreias do filme “Corra!”, em cartaz no Recife, e da série “Cara gente branca”, disponível no catálogo da Netflix, ressaltam a necessidade de discutir o racismo, as formas como a sociedade ainda evita confrontar um problema histórico e enraizado no Brasil e em outros países.
São projetos que lidam de maneiras diferentes com a ideia de racismo. Dirigido por Jordan Peele, “Corra!” é um longa-metragem de terror sobre o casal Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams). Ela leva o namorado negro para a casa dos pais, uma mansão que possui apenas empregados negros. A situação se torna gradualmente estranha e perigosa para Chris, com consequências sangrentas.
Já “Cara gente branca” mostra o cotidiano de jovens em uma universidade de elite nos Estados Unidos. Criado por Justin Simien a partir de um filme dirigido por ele mesmo em 2014, o enredo fala sobre Samantha (Logan Browning) e as agressões que ela e outros alunos sofrem por causa da cor da pele.
Cinema e racismo
Vestígios de racismo existem desde os primeiros anos do cinema. O longa-metragem “O nascimento de uma nação” (1915), de D.W. Griffith (1875-1948), é ao mesmo tempo louvado, pelo jeito como aprimorou a linguagem do cinema ao experimentar diferentes técnicas, e criticado, pela representação racista. “A arte nos leva a reflexões, pois tem a liberdade de quebrar padrões estabelecidos e trazer pontos de vistas ideológicos sobre a sociedade”, opina Rosa Berardo, cineasta e professora da Universidade Federal de Goiás, especialista em identidade cultural, gêneros e etnias.
“Nas narrativas de D.W. Griffith estavam o pacote de estereótipos, preconceitos e racismo sobre minorias étnicas, classes sociais e gênero”, explica Rosa. “O cinema reproduz o mundo em que vivemos, a ideologia do seu realizador. As representações identitárias são construídas por quem faz o filme, isso implica dizer que se essa pessoa, em suas relações pessoais, é racista e preconceituosa, ela vai trazer isso para seu cinema”, diz Rosa.
Cinema brasileiro
A presença do racismo, como tema de filmes e realidade que provoca injustiças, é perceptível na história do cinema nacional. “Décadas atrás o cinema brasileiro cometeu vários erros com representações racistas, machistas, estereotipadas, tanto de negros como de indígenas, mulheres e grupos LGBT”, lembra Rosa. “Em minha tese de doutorado analisei a representação do índio no cinema brasileiro e encontrei vários filmes que pregavam uma ideologia terrivelmente preconceituosa e racista”, destaca.
“Durante a Chanchada, os personagens negros não tinham um papel social importante na trama. Eram associados a figuras como o sambista, o malandro, o moleque. Já as mulheres negras eram majoritariamente representadas como objeto de desejo do homem, como a mulata ‘boazuda’”, lembra Rosa. “Grande Otelo e Oscarito formavam uma dupla recorrente nos filmes desse período, mas era clara a diferença e a discriminação no tratamento e pagamento desses atores. Grande Otelo tinha um salário menor e seu nome aparecia nos créditos após o de Oscarito”, ressalta.
O sucesso de “Corra!”, que teve orçamento em torno de U$ 5 milhões e já rendeu mais de U$ 170 milhões, fez crescer o nome do diretor Jordan Peele. Foi anunciado que ele será o produtor executivo de “Lovecraft Country”, nova série de terror da HBO. O enredo fala sobre os horrores do racismo nos Estados Unidos na década de 1950.
Racismo no cinema: presente e futuro
A arte e os meios de comunicação interferem na percepção sobre o racismo. “A mídia, seja cinema ou novela, está ligada a construção de identidades de uma nação”, diz Evelyn Sacramento, pesquisadora e integrante do Tela Preta, coletivo de cinema negro que surgiu em 2013, formado por alunos da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) dos cursos de cinema, jornalismo e história, composto ainda por Alane Reis, David Aynan, Larissa Fulana de Tal, Thamires Santos, Viviane Ferreira, José Carlos Ferreira e Everlane de Moraes. O grupo já lançou os filmes “Canções de Liberdade” e “O som do silêncio” (em fase de finalização), de David; e “Lápis de cor” e “Cinzas”, de Larissa.
“O que é visto nas telas é o caso exemplar da decadência do mito da democracia racial. Se por um lado se exalta uma sociedade igualitária; por outro, através da mídia, revela-se a forma como essa sociedade se expressa e quer ser vista, colocando os negros subservientes, marginalizados ou simplesmente ausentes em suas produções”, ressalta Evelyn.
Filmes como “Corra”, que mostra criatividade ao recorrer ao cinema de gênero para sugerir como a sociedade trata a cultura negra, transformando realidade em uma fábula de ficção científica e horror, indicam que hoje parece existir uma maior consciência crítica sobre o racismo. No cinema nacional, há maior quantidade de realizadores que apontam suas câmeras com coragem e personalidade para crises do cotidiano. “O audiovisual pode, sim, propor mudanças, mas sem políticas públicas que favoreçam grupos minoritários, os grupos dominantes vão continuar a fazer seus filmes e não avançamos para uma equidade. A mulher negra continuará sendo estereotipada, o homem negro marginalizado, assim como os gays, os índios”, opina Evelyn.
“Houve progresso, mas ainda há muito a se conquistar”, sugere Rosa. “Desde os anos 1990 jovens cineastas negros têm se apropriado das ferramentas do audiovisual para realizar filmes sobre a cultura negra a partir do ponto de vista cultural e ideológico de seus grupos”, ressalta.
Oscar
Na edição de 2016 do Oscar, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood sofreu críticas por ter ignorado artistas negros. A repercussão negativa parece ter impactado na edição deste ano. “As críticas fizeram com que este ano a Academia inserisse na competição filmes que abordassem o racismo, como ‘Eu não sou seu negro’ e ‘13º Emenda’, além de ‘Moonlight’, composto por atores negros e dirigido por Barry Jenkins, um diretor negro”, diz Evelyn Sacramento.
Sátira e ironia como armas de provocação
No primeiro episódio de “Cara gente branca”, alunos brancos criam uma festa secreta e vão de blackface, com os rostos pintados de preto, o que gera polêmica na universidade. “O blackface surgiu no começo do século 19, nos Estados Unidos, como uma das atrações de shows populares naquela época”, diz Samuel Santos, diretor do Poste Soluções Luminosas, grupo pernambucano de artistas negros cuja produção e pesquisa teatral são baseadas no resgate antropológico e na matriz africana.
“Atores brancos usavam carvão de cortiça e tintas para pintar seus rostos de preto, com exceção dos olhos e lábios, que eram realçados com um vermelho intenso. A intenção era representar personagens afro-americanos, satirizando e ridicularizando de modo extravagante os negros que, normalmente, eram apresentados como ignorantes, bêbados, vadios”, diz Samuel, que ressalta: “O blackface só pode ser justificado quando é feito para criticá-lo”.
O seriado aborda temas fortes e polêmicos com inteligência e humor, usando sátira e ironia como armas de provocação social. Em um dos episódios, Samantha diz: “Cara gente branca, o requerimento mínimo de amigos negros que vocês precisam para não serem vistos como racistas acabou de subir para dois. Desculpem, mas o seu ‘cara da maconha’ não conta”. Quando um ouvinte diz que seu programa é racista, ela responde: “Negros não podem ser racistas. Preconceituosos, sim, mas não racistas. Racismo descreve um sistema de desvantagem baseado em raça.
Negros não podem ser racistas porque nós não podemos nos beneficiar desse sistema”. Perguntada o que ela sentiria se alguém começasse um programa chamado “Cara gente negra”, a personagem diz: “Não precisa. Os meios de comunicação deixam claro o que as pessoas brancas pensam sobre nós”.
“A sociedade precisa falar sobre racismo. Pessoas brancas precisam falar sobre seus privilégios”, ressalta Evelyn. “Ao trazer o racismo como temática essas produções recentes proporcionam dois avanços: o maior número de pessoas que pensam sobre o racismo e discussões mais aprofundadas sobre o tema”, ressalta. “A repercussão de ‘Cara gente branca’ coloca isso em questão, quando pessoas ao redor do mundo ameaçam boicotar a Netflix, acreditando que estava fazendo ‘racismo reverso’. Esse boicote revela que a própria negação prova a existência do racismo”, destaca.

