Sex, 05 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
MÚSICA

Conheça Lucina, autora de canções de Ney Matogrosso e pioneira da música independente no Brasil

Longe dos holofotes, a cantora, compositora e instrumentista, mora em Maricá, no Rio, e compôs mais de 11 músicas gravadas por Ney Matogrosso, seu amigo

Ney Lucina conheceu Ney por volta de 1970, através do fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, então casado com Luhli. O trio morava numa casa em Santa Teresa, bairro entre a Zona Sul e o Centro do Rioao lado de Lucina e LuhliNey Lucina conheceu Ney por volta de 1970, através do fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, então casado com Luhli. O trio morava numa casa em Santa Teresa, bairro entre a Zona Sul e o Centro do Rioao lado de Lucina e Luhli - Foto: Reprodução/Facebook

Desde muito pequena, em Cuiabá, Mato Grosso, Lucia Helena Carvalho e Silva, hoje Lucina, vivia mergulhada numa espécie de sonosfera que a mãe, mesmo não sendo profissional, criava em casa cantarolando lindamente músicas de Silvinha Telles, Maysa e Dolores Duran. Mas só descobriu a música como algo que realmente gostava quando, aos oito anos, ouviu pela primeira vez "Chega de Saudade", de João Gilberto, no rádio. Ficou encantada. Cantar "te darei muitos beijinhos e carinhos sem ter fim" lhe provocava uma espécie de vergonha — da qual ela gostava.

Hoje, aos 75 anos, Lucina vive em Maricá, na Região Metropolitana do Rio, e é considerada uma das pioneiras da música independente no Brasil. Ao lado da parceira Luhli, com quem formou uma dupla intensa e criativa, foi a primeira mulher a produzir e lançar um disco de forma totalmente independente no país. Juntas, compuseram mais de 11 canções gravadas por Ney Matogrosso, com quem Lucina tem uma amizade profunda.

Uma das primeiras composições que chegou à voz do artista foi "Pedra de Rio", lançada em seu álbum solo "Água do Céu Pássaro", de 1975. A canção teve forte repercussão e voltou ao centro da atenção ao ser incluída em uma das cenas mais sensíveis do recente filme sobre a vida do cantor, interpretado por Jesuíta Barbosa.

— As pessoas têm uma identificação com essa música. Na voz do Ney, é linda. Foi lançada num disco solo dele e tem uma repercussão forte. No filme, ela aparece lindamente — diz Lucina.

Lucina conheceu Ney por volta de 1970, através do fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, então casado com Luhli. O trio morava numa casa em Santa Teresa, bairro entre a Zona Sul e o Centro do Rio. Lucina se juntou à trupe e ali viveu um período intenso de criação, afeto e experimentação. Nesse contexto, compôs para Ney canções como "Bandoleiro", "Coração Aprisionado", "Êta Nóis", "Bugre" e "Me Rói".

— Era um lugar incrível. Ney fazia artesanato, tudo isso dentro da casa deles. Nós dormíamos por lá, compúnhamos por lá. Era um ambiente mais que especial. "Fala" e "O Vira", por exemplo, também saíram dessa casa. São de Luhli e João Ricardo, do Secos & Molhados — lembrou a compositora.

A partir do álbum "Feitiço", de 1978, Ney gravou "Bandoleiro". No ano seguinte, no álbum "Seu Tipo" (1979), registrou "Me Rói". Em 1980, abriu o disco "Sujeito Estranho" com "Napoleão", também composta por Lucina. Em 1981, no álbum "Ney Matogrosso", gravou "De Marte".

A canção "Êta Nóis", composta por Luhli e Lucina, foi lançada por Ney em "Destino de Aventureiro" (1984). Já "Coração Aprisionado", também de Lucina, deu nome ao disco de 1983. Em "Bugre" (1986), aparecem as faixas "Bugre" e "Me Rói", reforçando a presença constante da compositora em sua discografia.

— O Ney praticamente morava na casa da Luhli. Foi lá que o conheci. Ele adorava. Gravou 11 músicas da gente. "Bandoleiro", por exemplo, ele pegou lá — contou Lucina.

"Para Ney, as pessoas são que nem bicho"
— Ele diz tudo que pensa, é extremamente sincero e não sai da dele. O que mais me impressiona nele é a falta de espanto com qualquer pessoa. A pessoa pode ter um ataque, gritar, ficar pelada na frente dele, que ele não se abala. Porque ele acha que somos todos como bichos. Tem cachorro que sai latindo, tem gato que gosta de banho. Para o Ney, todo mundo é bicho.

Lucina diz que Ney é "pé no chão", com uma forte ligação com a terra. Sobre o filme, elogiou a performance de Jesuíta Barbosa nos palcos, mas criticou a interpretação do artista fora deles:

— No filme eu não gostei do Ney de Souza Pereira. Eu acho que houve um exagero. Ele não tinha essa trejeito fora dos palcos, de fazer boquinha, nem nada. No palco, sim. Ele tá perfeito, e Jesuíta arrebentou. Mas, no dia a dia, ele é um cara que fica na dele — argumentou a compositora e amiga de Ney.

Primeira mulher a gravar independente no Brasil
Lucina também ocupa um lugar pioneiro na história da música brasileira. Em 1979, ao lado de Luhli, lançou "Luli & Lucina", o primeiro disco independente feito por mulheres no Brasil. As duas recusaram padrões impostos pelas gravadoras e criaram um modo próprio de produção, já que, até o final dos anos 80, as mulheres, no ponto de vista das grandes gravadoras, serviam lindamente para cantar, mas não para compor. O papel de intérprete não era o pior, mas também não satisfazia as artistas que, além de cantar, pretendiam se expressar.

— As gravadoras queriam padrões. E a gente não queria apresentar padrões. Queríamos mostrar nossa expressão — disse Lucina.

O disco foi gravado com bases de violão e voz, sobre as quais convidados improvisavam livremente no estúdio. O lançamento, no Parque Lage, foi uma grande festa, celebrando a liberdade criativa de uma dupla que influenciaria gerações de artistas. Com o sucesso do álbum, criaram uma associação de músicos independentes, que reuniu nomes como Boca Livre, Barca do Sol e Danilo Caymmi. Era uma resposta às gravadoras e um reflexo do espírito contracultural da década de 1970.

Da timidez ao palco, e da amizade a uma família com Luhli
Como um passaporte para a libertação da sua extrema timidez, Lucina aprendeu a tocar violão sozinha na adolescência e começou a cantar para acompanhar. No início, não ouvia sua própria voz como "boa" e tampouco tinha expectativas profissionais. Mas passou a tocar em festas e no auditório do Colégio São Paulo, no Rio, onde estudava.

Foi nesse ambiente que ela conheceu colegas como Gracinha Leporace e seu irmão Fernando Leporace, com quem formou o Grupo Manifesto, embrião da sua carreira artística. O grupo contava ainda com Renato Corrêa, Mariozinho Rocha, Guto Graça Mello, Augusto e Amaury Tristão. Em 1967, Lucina estreou profissionalmente como solista do grupo, participando do II Festival Internacional da Canção com “Margarida”, de Gutemberg Guarabyra, premiada em primeiro lugar na fase nacional.

Na faculdade de Comunicação da UFF, em Niterói, Lucina conheceu Luhli durante uma entrevista para um projeto universitário. Encantada com o talento da compositora, mostrou-lhe suas próprias músicas. Em um mês, as duas já tinham 20 canções compostas em parceria. Estava formada ali não só uma dupla musical, mas uma parceria afetiva, de vida e criação.

Em 1972, apresentaram-se no VII Festival Internacional da Canção com "Flor Lilás", uma composição psicodélica e hippie sobre o medo da juventude. A música abriu portas: chamou atenção de Lennie Dale, que as levou para se apresentarem na boate Pujol, com os Dzi Croquettes, grupo símbolo da liberdade de gênero e expressão na época.

Pouco tempo depois, Luli, Lucina e Luiz Fernando se mudaram para um sítio em Mangaratiba, Na Costa Verde do Rio. Foi lá que decidiram viver um romance fora dos padrões sociais. Juntos por mais de 15 anos, os três formaram uma família não convencional: Luiz foi companheiro das duas, pai de dois filhos com Luhli e dois com Lucina. Todos se consideram irmãos.

Lucina conta que a vida no sítio era de criação e simplicidade. O dia começava com o nascer do sol, passava pela lida na horta, sessões de composição e trabalhos de fotografia e escultura de Luiz. A música e a arte eram a espinha dorsal daquela rotina livre e poética.

Dessa união nasceram cerca de 800 composições. Algumas foram gravadas não só por Ney Matogrosso, mas por nomes como Nana Caymmi, Joyce Moreno e Wanderléa, que frequentavam o recanto carioca da cuiabana.

A morte de Luiz Fernando, em 1990, vítima de câncer linfático, abalou profundamente a família. Em 1997, a dupla Luli & Lucina se separou profissionalmente, mas a parceria e os laços afetivos continuaram. Em 2018, vítima de insuficiência respiratória, Luhli morreu com 73 anos, deixando uma incrível discografia.

— Comecei uma carreira solo e fui muito bem, mas o importante é que a dupla acabou, mas a parceria não. A parceria continuou porque somos uma família, uma tribo como a gente chamava. Nossos filhos são irmãos, é muito vínculo. Um vínculo muito forte que permaneceu até o falecimento da Luli — disse Lucina.

Durante a pandemia da Covid-19, Lucina compôs 60 músicas e revela que tem mais de 200 canções inéditas escritas.

Veja também

Newsletter