De leitor a detetive: uma radiografia do romance policial como gênero literário
Estilo vem ganhando força ao exibir os fantasmas deixados pelos crimes cometidos na América Latina
Um assassino escondido atrás de uma máscara de papel com rosto desenhado a lápis invade a casa de uma família e ameaça todos com uma arma. Coloca homem, mulher e criança sentados em cadeiras dispostas em círculo, de frente uns para os outros, amordaçados e apavorados. Em seguida, o algoz lança mão de um alicate e uma serra e arranca a língua do homem, que agoniza até morrer; dá um tiro na cabeça da mulher, e sai de cena deixando para trás a pequena testemunha obviamente traumatizada.
O crime é descrito de maneira tão assustadora que a sensação é de estar diante da cena nauseante de tortura e violência. A ação se repete com outras famílias, no romance policial "O Sorriso da Hiena", de Gustavo Ávila (editora Verus, 266 páginas, R$ 34,90) cujos direitos autorais já foram vendidos para a Globo, e devem virar uma série para a TV, ainda sem previsão de início das filmagens.
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No modelo clássico de romance policial, crime só é desvendado na última página
A depender do estilo do romance policial, as figuras do assassino e do detetive podem não ser os elementos mais interessantes da história. Há muito mais a ser desvendado nesse gênero literário.
O escritor e professor do departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), André de Sena endossa a afirmação. "Gosto do hibridismo de alguns contos policiais, em que se observa a presença do sobrenatural. O escritor Braulio Tavares reuniu contos policiais que enveredam no fantástico, em um livro muito bom intitulado 'Detetives do sobrenatural'", ressalta.
"Uma das características que fez 'O Sorriso da Hiena' chamar atenção foi o fato do foco dela não estar na descoberta ou captura do assassino. Como um romance policial, isso já sai do comum. Você já sabe logo nas primeiras páginas quem é o assassino e quais são as suas motivações. Isso tira a necessidade de ficar buscando pistas para desvendar um simples mistério policial e coloca o foco do leitor nas ações dos personagens, nas suas decisões, no caminho que ele decide percorrer", explica Gustavo.
O crítico literário Schneider Carpegianni analisa que a literatura hispano-americana contemporânea tem se apropriado do gênero policial para exibir os fantasmas deixados pelos crimes cometidos. "Muitas vezes na narrativa o crime até já prescreveu. O que fica é a atmosfera dele", explica o crítico, que dá exemplo de países como Colômbia, onde o legado da violência do narcotráfico deixado por Pablo Escobar ainda é espectro para enredos de escritores como Juan Gabriel Vásquez.
Doutor em Literatura pela UFPE, com a tese "Bolanianas: Memórias e Espanto a partir de Estrela Distante", Carpegianni pesquisou a fundo a obra do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), também permeada pelo gênero policial com essa característica fantasmagórica.
"Só que seus fantasmas são herança da ditadura. Há enredos em que (o ditador) Pinochet já saiu do poder; a vítima nem lembra mais a cara de seu torturador...", descreve o crítico, ressaltando que o que importa não é o crime, mas o trauma deixado por ele.
"O mistério e a dúvida ficam, porém em forma de fantasma", esclarece. Fascinado pela figura do detetive, o sonho de Bolaño era não apenas ser um deles, mas chegar ao local do crime antes de qualquer pessoa. Tanto é que o escritor chileno escreveu poemas em que encarna a figura do investigador.
Lado sombrio
No romance policial, é comum o leitor assumir o lugar do detetive. No entanto, a narrativa pode se tornar mais complexa e o leitor precisará tomar o lugar de vários personagens. No caso da obra de Gustavo, ora somos o assassino, ora o detetive, ora o psicólogo que trata das crianças e sabe quem é o assassino, conversa com ele, mas aceita ficar calado para realizado um 'estudo de comportamento' das crianças para 'ajudar' a humanidade a se livrar do seu lado mal.
"Em muitas questões morais levantadas, o próprio leitor se pega perguntado 'será que eu aceitaria essa proposta?', 'é cruel, mas no fundo, pensando de forma racional, tem um motivo para isso ser feito'. Muitos leitores me mandam mensagens dizendo que não aceitam o que aconteceu, mas que entendem a proposta do assassino. Muitos acabam nem sentindo raiva dele ou do psicólogo, que aceita participar desse estudo. Acho que isso mexeu muito com as pessoas, com as certezas que achamos ter; coloca em questão o lado sombrio que existe em todos nós. No íntimo de cada um", explica o escritor.
Menos para estilos de escritores clássicos de gênero policial, como os ingleses Agatha Christie (1890-1976) e Arthur Conan Doyle (1859-1930) - criador do famoso detetive Sherlock Holmes -, e mais para a literatura de terror de "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson (1850-1894), o romance de Gustavo investiga o que há de monstruoso no ser humano, maior fonte de inspiração para a sua escrita. O que transforma alguém 'bom' em 'mal'.
"Não há lugar melhor do que a nossa sociedade para encontrarmos monstros. A maldade está no nosso mundo e eu quero que as pessoas não a julguem pelo o que ela é, mas que tentem entender como ela se desenvolve", declara o escritor, complementando que só com esse entendimento mudaremos a sociedade.
"Quando vemos um ato muito cruel, muitas vezes nos limitamos ao pensamento: 'nossa que absurdo'. Mas nunca questionamos de fato o que aconteceu antes para isso ocorrer agora. E se continuarmos fazendo isso, se não tentarmos entender o que vem antes, nunca vamos mudar nossa sociedade", reflete, para logo emendar que seu livro não pretende dar a resposta para as duas faces extremamente opostas que o ser humano pode assumir. "Filósofos e cientistas debatem até hoje esse tema".
Poema de Roberto Bolaño,
extraído de "Los perros románticos" (2009)
Os detetives
Sonhei com detetives perdidos na cidade sombria
Ouvi seus gemidos, suas náuseas, a delicadeza
De suas fugas
Sonhei com dois pintores que ainda não tinham
40 anos quando Colombo
Descobriu a América
(Um clássico, atemporal, o outro
Moderno sempre
Como a merda)
Sonhei com uma pista iluminada
O caminho das serpentes
Percorrido uma e outra vez
Por detetives
Absolutamente desesperados
Sonhei com um caso difícil
Vi os corredores cheios de policiais
Vi os questionários que ninguém resolve
Os arquivos infames
E logo vi o detetive
Voltar ao local do crime
Sozinho e tranquilo
Como nos piores pesadelos
Vi quando ele sentou no chão para fumar
Em um quarto com restos de sangue
Enquanto os ponteiros do relógio
Viajavam encolhidos pela noite
Interminável.

