[ENTREVISTA] Nádia Battella Gotlib fala sobre Clarice Lispector
Para a especialista, a escritora que passou a infância e adolescência no Recife tem uma marca própria que transmitiu a todos os gêneros literários que produziu ao longo da vida
Nádia Battella Gotlib é uma das maiores especialistas em Clarice Lispector no País. Autora de livros como "Clarice - uma vida que se conta" e "Clarice: Fotobiografia", é docente da Universidade de São Paulo, e concedeu uma entrevista por e-mail ao Portal FolhaPE pela ocasião dos 40 anos de morte da escritora.
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Portal FolhaPE - O que despertou, em você, o interesse por Clarice. Quem é ela para você, Nádia, além da especialista?
Nádia Battella Gotlib - Clarice, para mim, é uma excelente escritora. Desde o primeiro texto que li, nos tempos de universidade, o que me chamou a atenção foi o nível de qualidade de seus textos. E até hoje é o que mais me encanta, pela capacidade de apreender os labirintos da alma humana. E por escrever mantendo a ‘marca Clarice’ em vários gêneros narrativos e em vários tipos de discurso: romance, novela, conto, crônica, carta, entrevista (enquanto entrevistadora), página feminina, literatura infantil. Lembro que escreveu até uma peça de teatro e uma conferência sobre a vanguarda na literatura brasileira. Sua obra é diversificada e intensa.
FolhaPE - Qual o papel de Clarice na literatura brasileira diante do papel que ocupou, e ainda ocupa, enquanto mulher?
Nádia - Embora não tenha sido ativista e tenha até criticado o feminismo pelo risco da sua burocratização, Clarice colaborou de modo decisivo para a emancipação da mulher, ao desvendar novas perspectivas de vida contra os limites paternalistas impostos por uma sociedade autoritária e machista. A mulher da classe média e inserida na vida familiar ganha, na sua literatura, uma nova dimensão pela descoberta de novas experiências possíveis que enriquecem a intimidade e a vida prática. Clarice leva a mulher a se reinventar.
FolhaPE - Clarice despertou interesse/desejos/paixões nos homens. Como vê essa nuance e o quanto dessa mulher desejada está nos escritos dela?
Nádia - Clarice era uma mulher bonita que atraía atenções. Mas era extremamente discreta quanto a essas paixões.
FolhaPE - É curioso o uso "banal" das frases de Clarice, muito disseminadas nas redes sociais, inclusive creditando a ela frases que não são dela. Há alguma frase que você conheça que muitos acham que é de Clarice, mas não é?
Nádia - Não me lembro agora de nenhuma porque não faço questão de memorizar tais frases. São horríveis. Banais, por vezes ingênuas, e diria até ridículas. Quero é esquecer tais frases.
FolhaPE - Para você, Clarice Lispector é uma escritora popular no Brasil? Seus leitores se apropriam, de fato, de sua obra?
Nádia - Sim, Clarice é muito lida no Brasil e no exterior. No Brasil começou a ser mais popular quando passou a colaborar na revista Senhor, no início dos anos 1960, revista que tinha excelente divulgação. E no exterior, começou a ser traduzida nos anos 1950, nos Estados Unidos. E nos anos 1960, na França. No começo desse nosso século já tinha sua obra praticamente completa traduzida em algumas línguas, com exceção das cartas, que têm edição mais recente no Brasil. Nesses últimos quase setenta anos houve tantas traduções que, há cinco anos, tive informação de que havia sido traduzida já em cerca de 30 países e em línguas como o búlgaro, o finlandês, o japonês, o hebraico, o russo, o tcheco, o turco, o coreano, entre outras...
FolhaPE - Qual a característica de Clarice que mais chama sua atenção?
Nádia - A capacidade de traduzir os meandros da experiência da intimidade das personagens, com detalhes que deixam os psicanalistas realmente surpresos. Seria intuição? Seria perspicácia na observação? Seria um projeto consciente, minuciosamente programado? Talvez nem mesmo Clarice pudesse explicar essa pujança de criatividade.


