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Mulheres que revolucionam a arte com olhar real

Juliana Lapa, Anne Souza, Benedita Arcoverde, Joana Liberal, Ianah e Fefa Lins contam experiências enquanto artistas visuais em um cenário sedimentado pela visão de homens brancos

Arte de Juliana Lapa Arte de Juliana Lapa  - Foto: Divulgação

Há um padrão nas artes visuais em se tratando de corpos, mais especificamente de corpos de mulheres, que ganham representações idealizadas por visões periféricas de artistas (homens) e que não enxergam além da erotização de peitos, bundas e vaginas. Exceções à parte, via de regra, a "poesia" contida em obras que objetificam nus femininos ao bel prazer de quem os enxerga, leva à irrefutável conclusão de que são muitas as oportunidades perdidas de dar ressignificação à imagem secular e erroneamente construída da mulher ao longo do tempo.

Para um dia oficialmente dedicado a elas, já que neste domingo é celebrado o Dia Internacional da Mulher, nada mais apropriado do que trazer à tona uma geração de artistas locais que pintam, esculpem, desenham, bordam, grafitam, tatuam, ilustram e, principalmente, pensam e (se) expõem como mulheres-artistas ou como artistas-mulheres, para elas tanto faz.

"Tenho a impressão que nunca houve separação. É muito arte e vida juntos, não saberia separar e, se tentasse, seria meio catastrófico emocionalmente", confessa Juliana Lapa, 34 anos de vida e quase isso como profissional das artes. "Mesmo quando estudava Direito e queria ser advogada criminalista, existia um modo de viver e de experienciar tudo artisticamente. Hoje em dia, no meu trabalho, as experiências pessoais e a investigação do feminino vem muito dessa relação com tudo à minha volta, com a família, com a sociedade, a política e a espiritualidade", completa a pernambucana, que, em paralelo ao fluir do feminino externado em seus desenhos, percorre também pelas linguagens da literatura e do cinema.

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Juliana, que não acreditava que podia ser artista e traz em seu autorretrato o "atravessar os limites dos sentidos, das palavras e de tudo o que é estabelecido", tem a sensação de que exposições e museus não dão acesso à expressão das mulheres quando têm seus corpos retratados por homens. "E aí quando vejo um trabalho artístico de um homem sobre o corpo de uma mulher e sinto um incômodo num lugar de atraso de debate, quando há a objetificação, por exemplo, eu perco o interesse e aquilo não entra", ressalta ela, que estende a percepção das realidades de gêneros no contexto atual.

"Vejo muitos trabalhos de artistas mulheres versando sobre seus corpos e vejo ali muita potência e investigação. Os homens precisam ouvir, ver e absorver esses trabalhos. Não se trata de uma guerra focada em quem pode desenhar o corpo de quem - vejo muitos bons artistas que se debruçaram sobre fisiologias outras e que passeiam pelos gêneros -a questão é que existe uma grande maioria de homens artistas consolidados na história da arte porque às mulheres sempre foi negado abstrair. E, por mais que mulheres estejam ocupando mais cargos, ainda estamos vivendo tempos machos, e a subjetividade feminina é uma afronta".

Assim como ela, Anne Souza, ilustradora, muralista e outras "coisitas mais" no universo das artes, coloca-se como "artista urbana preta" o tanto quanto preocupada em ocupar espaços levados predominantemente por homens. "Porque se a gente não se une para botar a cara no mundo, não teremos nosso espaço", retruca ela, que expõe em pinturas, lambes e murais-gritos que a consignam como artista e mulher. "Foi uma mina de São Paulo, a 'Negahamburguer', minha referência nos lambes, porque pouco tínhamos de mulheres que praticavam por aqui e um dia sou eu quem quer ser mencionada por outras 'manas'", deseja a recifense, que aspira, como outras, espaços que acomodem sentimentos por meio da arte.

"Benedita nas artes é um corpo aberto, uma ferida escancarada que cheira cada vez mais forte, e também um lugar de cura". É assim que Benedita Arcoverde, 26, travesti, negra e artista, enxerga o seu fazer artístico. A paulista vive há 20 anos na cidade que escolheu como sobrenome, na Região do Moxotó. E segue insistindo em "compartilhar um pouco do que é habitar em si mesma, de como é andar, chorar e sorrir" em seu próprio corpo.

"O meu maior projeto de vida é me manter viva. E, para 2020, eu quero isso", admite ela, que tem trabalhos como artista visual e performer. "É uma forma que encontrei de compartilhar, de dividir um pouco das minhas angústias, medos e traumas. Minha intenção é de que, quando meu corpo é visto por minhas irmãs negras e travestis, elas se sintam um fortalecidas, saibam que não estão sozinhas", ressalta.

Sexualidade como processo criativo
"Um corpo expressivo, uma mente fértil, mãos inquietas e o coração de esponja". A 'bio' da artista visual Joana Liberal, 30, é autoexplicativa como deveriam ser as 'bios' em redes sociais. Escultura, gravura, figurino, direção de arte, costura e cenografia também são itens que integram a descrição de uma pesquisadora de corpos que tem como alicerce de seu trabalho questões reais sobre sexualidade, mais especificamente sobre suas descobertas como mulher lésbica, que expurga nas obras que assina, sentimentos próprios e alheios - já que seu intuito é "abrir caminhos, promover diálogos e naturalizar tesões".

"Meu processo criativo está envolvido com o momento que estou vivendo. Desde a faculdade, pesquiso corpos, a questão das mulheres e a identidade, e isso vem sendo um processo meu de descoberta e de percepção do outro. É uma busca infinita de trazer corpos de mulheres trans, cis, negras, gordas, deficientes, e isso tem um poder de representação importante, de como a mulher é vista e como pode ser identificada", pondera.

Joana se autodenomina "exploradora de materiais diversos, curiosa e atenta", contexto que a leva a trabalhar ora com cerâmica, ora com modelagem, costura e outras manualidades, introduzindo ao universo feminino uma arte plástica, real e "barulhenta". "Minhas obras são impactantes, a alguns incomodam e outros agradam, mas o que quero é tornar as coisas naturais, porque estamos falando sobre corpos, desejos, vida. Sexualidade requer naturalização, embora ainda seja tabu e perdemos muito com isso. O silêncio nunca nos protegeu de nada, e a arte é crítica, é política e é também uma abertura para falar sobre isso".

Joana Liberal, artista

Joana Liberal, artista - Crédito: Divulgação

E o "isso" no trabalho de Joana é o autorretrato do erótico esculpido por ela e dela mesma, humanizando sexo, corpos entrelaçados e representações de mulheres "(...) em chamas, inflamado. Carne viva. De se sentir viva. De paixão", como bem descreveu ela mesma sobre sua mais recente exposição, "Arde", que esteve em cartaz na Galeria Maumau em 2019, com obras que flagravam o "cotidiano lésbico, a fala dos desejos e o grão quente carregado - o fogo".

"Precisamos humanizar o sexo, e o erótico que a gente conhece não foi feito para as mulheres, foi feito usando as mulheres como um objeto a ser consumido. O que se vê é um corpo que a mulher não tem, fetichizado por uma visão pornográfica. Eu me percebi sendo pouco representada como mulher lésbica, por isso trouxe isso para o meu trabalho também", conclui Joana.>p/>

"Mulheres retratam os corpos femininos a partir do que veem no espelho"
Muralista, ilustradora, tatuadora, negra. Ianah, 31, busca "reeducar o olhar para enxergar a beleza que há no que está fora do padrão". E, entre machismos, posições erotizadas e corpos estigmatizados, ela opta em transitar pelo que é tido como "imperfeito e mal acabado", fincando sua arte no mundo real que dialoga com qualquer pessoa.

 

Ianah, artista

Ianah, artista - Crédito: Divulgação

"Na pele, na galeria, na sala de estar ou nas ruas, o fato de retratar o mundo a partir de um olhar feminino não quer dizer que eu queira só falar com mulheres, mas sim que eu sou uma mulher e que esse é meu ponto de vista a respeito do mundo. E mulheres retratam corpos femininos a partir da própria experiência, do que ela vê no espelho, do que faz parte da nossa realidade. E aqui, corpos não são só corpos, têm mensagem a ser passada em cada dobrinha, pelo, curva, diferente do que é idealizado por homens (héteros), que retratam o feminino a partir de um olhar de fora, mesmo quando abrem o olhar para mulheres reais, ainda assim as retratam como objeto de desejo e não como sujeitas que pensam, sentem e vivem pra além do desejo deles".

Já para Fefa Lins, 28, o tanto quanto inserida no contexto de sensibilidade artística, a narrativa dos corpos sob o olhar masculino é o que se consome, também, nos cinemas, na publicidade e em outras vias que acompanham a visão hegemônica de uma sociedade composta por homens cis, héteros e brancos.

"São corpos representados por eles e para eles, como se fosse uma forma de dominação. Mas a questão nem é se o olhar é feminino ou masculino, acho que, quando se fala de corpos, tem que saber de onde está partindo o olhar", salienta ela, que tem em sua obra um lugar de fala, com liberdade para provocar o próprio corpo e usá-lo, (re)criando a própria arte.

"Fefa artista é a mesma que questiona a si, com trabalhos que se inserem dentro do meu processo pessoal sobre identidade de gênero, práticas sexuais, dissidências e sobre possbilidades desse corpo, que é meu. Mulheres estão produzindo as melhores coisas, assim como pessoas trans, não-binárias, trans, negros, indígenas. Todas nós estamos criando muita coisa e tomando as narrativas", sentencia.


 

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