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Música experimental em Pernambuco merece mais espaço

Artistas do cenário da música do Estado buscam levar as diversas possibilidades da "música experimental" para a mídia e os palcos. Movimento se fortalece através de novos grupos

D'Mingus, músico pernambucanoD'Mingus, músico pernambucano - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

Em meio a sintetizadores e aparatos tecnológicos, a música se transforma e dá lugar a (re)invenções, as mais diversas delas. Um barulhinho de rangido de porta aqui, uma cadeira arrastada acolá e até um vento forte soprando, e eis que o universo das sonoridades ganha vida (nova) e passa a ser explorado além das fronteiras do óbvio de um estúdio tradicional e de um formato clássico de palco e plateia.

É o que alguns denominam de ‘música experimental’, é o que para outros nem nome tem, mas, à parte disso, o que importa (e muito) é trazer à tona as inúmeras possibilidades de aguçar os sentidos para além dos ouvidos e viver possibilidades diversas na música.

“Sentir a música de maneira diferente, pelos sons graves, pela luz que segue o público, com vozes que, se manipuladas, deixam de ser apenas um instrumento cantado e passam a ser um instrumento eletrônico. São formas de fazer canção”, explicou Tomás Brandão, produtor musical que, ao lado de Miguel Mendes, Carlos Filho e Cleison Ramons compõe o Estesia, projeto artístico (e empreendedor) que busca explorar recursos criativos da música e da arte como um todo, já que a proposta é incitar as suas diversas vertentes. “As pessoas olham e acham diferente”, completa ele.

E de fato, é. Ao mesmo tempo em que o processo criativo da música é um velho e secular conhecido lá do século 20 e sim, dessa vez denominado de 'movimentos experimentais', levados por ruídos e objetos que pudessem provocar efeitos sonoros, ou da psicodelia de algumas produções de rock e até e principalmente do estilo erudito dos tempos de John Cage (EUA), um dos principais influenciadores da época que, envolto por pianos, silêncios e falas acaloradas introduzidas ocasionalmente nas músicas, permanece como referência dos contemporâneos. "Produzimos uma música do Caetano (Veloso) usando um efeito do Cage, ao mesmo tempo em que fazíamos uma encenação que remetia ao teatro", contou Tomás.

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São as confluências da arte inseridas em um mesmo contexto e transformados em espetáculos. E como diria o próprio Cage, na literatura sobre o assunto, “uma ação experimental é um resultado de que não está previsto”. Sem prever, o Estesia, por exemplo, apenas produz e o resultado é "sentido" numa relação de simbiose com o público.

Estesia promove encontros sonoros de performance e bate-papo

Estesia promove encontros sonoros de performance e bate-papo - Crédito: Thiago Guillen/Divulgação



"Quando começamos a fazer música não pensamos que estamos fazendo música experimental. Testamos formatos diferentes de shows e de formas de fazer canção, que podem ser gravadas em casa, com ruídos cotidianos, por exemplo. Trabalhamos com processos que são já conhecidos, mas são experimentados em formatos diferentes", explicou o músico do Estesia, que em 2019 deve encaminhar a terceira edição do projeto que leva arte e tecnologia ao Porto Mídia, no Bairro do Recife, com apresentações artísticas e debates sobre os caminhos em que a música pode circular.

Excentricidades Sonoras

Dentre as possibilidades de explorar movimentações na música, o resgate de memórias afetivas e de ouvir, por exemplo, de Chico Buarque a Vinicius de Moraes, ao mesmo tempo em que se pode escapulir pela música eletrônica e extrair boas audições do todo, influenciou o músico pernambucano D'Mingus. Apesar dos estímulos, ele buscou a sua própria sonoridade desde cedo, ora sob as batidas da música eletrônica, ora envolvido com as influências dos bailes funk dos anos 1980, até chegar ao que ele chamou de "lado compositor", manipulando instrumentos para produzir música. "Explorei exaustivamente os registros em toca-fitas, gravando, depois registrando a gravação e colocando para tocar, e continuava tocando por cima e registrando novamente... enfim, era uma bola de neve, de se criar uma sonoridade de camadas, sobrepondo-as", contou o artista.

Mas apesar de apreciar e reconhecer beleza no rudimentar de suas produções, "a parte digital da coisa" como ele mesmo se referiu, o fez acordar para outras possibilidades. "Dos anos 1990 para cá, continuei com o formato do cassete e segui assim até mais ou menos 2000, mas desde sempre aliando as criações ao uso de computador", completou D'Mingus, um dos nomes de peso da geração de produções e composições artísticas/criativas/empreendedoras em Pernambuco.

"Trabalho com uma lógica, uma concepção expandida do que é música e que pode ser entrelaçada esteticamente ao que faço, no sentido de fazer entender que qualquer tipo de som pode significar algo, pode ser usada como uma forma musical. Porque para mim música é intenção do que se tem com os sons, um discurso que pode dar a qualquer coisa que pode se transformar em um objeto sonoro".

A relação do hoje artista D'Mingus ainda passa pelo universo intuitivo e lúdico do que o outrora Domingos Sávio - o seu nome de batismo - fazia quando o que era manipulado eram os seus brinquedos de infância. "Desaprendi a brincar com eles e aprendi a usar outras coisas com a música e com o áudio", conta ele que, em paralelo a suas experimentações, segue em carreira solo, trabalha na produção cultural de outros artistas da cena, a exemplo de Marília Parente e Flaviola, que acabam recebendo a personalidade artística do autor nada hermético de "Fricção" (2013), "Filme em Quadrinhos" (2010), "Canções do Quarto de Trás" (2012) e "Saturno Retrógrado" (2015).

Marcelo Campello, músico

Marcelo Campello, músico - Crédito: Facebook/Reprodução



ENTREVISTA/ Marcelo Campello

Ciência a favor dos ruídos


A pesquisa de doutorado do músico pernambucano Marcelo Campello - “Estratégias Compositivas para Acessibilidade Performática: uma Abordagem de Campo” - problematizou movimentos experimentais dos sons, com um direcionamento mais voltado para possibilidades de democratizar ações e contribuir para a difusão do “fazer musical cotidiano”. Na prática, a 'Oficina Gambiarra' fez o elo entre a teoria e a prática de seus estudos. Em entrevista à Folha de Pernambuco, Campello - que integra um coletivo de música experimental ao lado de outros estudiosos (e curiosos) do assunto - falou sobre o que pensa acerca de "testar" instrumentos (sons) e suas possibilidades de democratização.

Criar e desburocratizar

O recurso do improviso livre sobre sonoridades pré-selecionadas, que uso frequentemente, pode ser pensado relativamente como um meio de "desburocratizar" a performance. Isso para mim é um mote, pois me interessa essa liberdade de decisão. Mas em cada projeto os próprios instrumentos, as técnicas, a estilização em jogo criam uma moldura de possibilidades musicais, ou seja, cada projeto é definido por "limites" que o identificam.

Sonoridades ‘não-convencionais’ e já existentes

Ao arrastar uma cadeira ou ao abrir uma porta estamos cotidianamente dentro de possibilidades de sons. A curiosidade me levou a investigar outros caminhos. Note-se que parte do que era considerado "não-convencional" já foi convencionado musicalmente. Parece que as sonoridades estão num processo contínuo de convenção.

Mercado

Talvez o principal obstáculo seja praticamente a ausência da música experimental nas principais mídias e palcos, o que dificulta a familiarização com seus códigos por parte do público.

Viés social da ‘música experimental’ - Oficina Gambiarra

O objetivo é contribuir para a difusão do fazer musical no cotidiano, em favor do aproveitamento de seus benefícios, por meio de diversas estratégias de democratização do ato performático. Determinados procedimentos da música experimental podem ser aliados, como a incorporação de ruídos e a construção de instrumentos diferentes, a partir de materiais reaproveitados, por exemplo. A Oficina Gambiarra surgiu como campo de minha pesquisa de doutorado, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB; 2013-2018). Ela permanece ativa e sua última edição ocorreu no Circuito de Oficinas Benfica (Centro Cultural Benfica), em 2018, como curso de extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).  

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