Na Flip, Lilia Guerra e Alia Trabucco Zerán dão voz a domésticas silenciadas pela História
Autoras escrevem a respeito de maternidade, ausência paterna e violência estrutural suas obras
A mesa “A casa, o mundo” reuniu no Auditório da Matriz a chilena Alia Trabucco Zerán e a brasileira Lilia Guerra para discutir, através da literatura, os impactos do trabalho doméstico enquanto marcador de desigualdades sociais na América Latina. A conversa, realizada nesta quinta-feira (31) durante a Festa Literária Internacional de Paraty, foi mediada por Micheline Alves.
A mesa partiu da centralidade do trabalho doméstico, uma das cicatrizes mais profundas da sociedade latina, nos romances mais recentes das duas autoras: “As limpas” (Fósforo, 2024), de Alia, e “O Céu para os bastardos” (Todavia, 2023), de Lilia. Em ambos os livros, mulheres que exercem funções domésticas deixam de ser personagens secundárias ou decorativas para ganharem voz, pensamento e densidade.
Usando um vestido verde, estampado com a fotografia de Carolina Maria de Jesus indo viajar de avião, Lilia Guerra explicou que sua narradora, de “O céu para os bastardos”, surgiu inicialmente em um outro livro (“Rua do Larguinho”), como uma personagem coadjuvante. Ao longo do tempo, tornou-se uma figura com força suficiente para abordar não apenas o trabalho doméstico, mas também a maternidade, a religiosidade popular e as contradições da periferia.
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Vinda de gerações de matriarcas que viveram do trabalho doméstico - e ela mesma uma ex-faxineira, Lilia relatou que “O Céu para os bastardos” remonta à uma lembrança de infância. Ao descobrir que não poderia fazer catecismo por não ter o nome do pai no documento, ouviu da mãe uma explicação dura. O tipo de experiência que, mais tarde, se transformaria em matéria literária.
— Eu não conhecia essa palavra "bastardo" quando era criança. Nunca ninguém falou pra mim: "olha, você é uma bastarda", mas ouvia muito que era filha de mãe solteira, né, ouvia assim nas conversas. E até descobrir o que que isso acarretava na minha vida demorou um pouco. Quando comecei a observar essa ausência paterna, não me fazia tanta falta, mas os meus primos faziam catecismo e eu achava bacana. Fiquei esperando o dia que também seria o dia de fazer catecismo, né. Eu perguntei e insisti tanto que minha mãe precisou me contar a verdade — disse.
Alia Trabucco Zerán compartilhou uma experiência marcante que viveu após a publicação de “As limpas”. Sem perfis ativos em redes sociais até então, abriu um para interagir com o público e recebeu mensagens de três mulheres chilenas que se disseram patroas e se mostraram profundamente incomodadas com o livro. Sentindo-se diretamente interpeladas pela narrativa, as leitoras manifestaram indignação e se defenderam dizendo que jamais tratariam suas empregadas daquela forma.
"Três mulheres, na verdade, entraram em contato comigo, e elas eram as patroas. As três mulheres eram patroas e estavam indignadas, furiosas, me dizendo diretamente, sentindo-se atacadas pessoalmente, estavam muito ressentidas, e que jamais tratariam daquela forma as empregadas domésticas delas. Três mensagens que eu recebi e que guardei, porque isso me pareceu muito significativo daquilo que o livro pode gerar e como ele pode incomodar ao ponto em que elas se sentiram pessoalmente interpeladas" afirmou.
Para Alia, o episódio revelou o potencial da literatura para provocar reações intensas. Em contraste, contou também ter sido procurada por mulheres netas e filhas de empregadas domésticas, que não seguiram o mesmo caminho das mães e se sentiram tocadas pela leitura, especialmente por reconhecerem nessa experiência um incômodo persistente. Mesmo sem jamais ter exercido a profissão, Aila explicou o processo de pesquisa e escrita que a levou a descrever com tanta agudez o trabalho doméstico:
– Para mim, são correntes, torrentes, são como rios de violências que eu também vivo, que também me atravessam – explicou. – E eu não consigo estar fora disso. Como, por exemplo, a raiva com relação ao genocídio cometido por Israel na Palestina, e que também tem relação com a minha origem. E eu digo porque o meu nome é um nome de origem árabe, também faz parte dessa história. Essas torrentes de realidade ingressam na literatura, e não é algo que eu possa controlar muito. Ao contrário, é algo para o qual eu gosto de abrir a porta, porque me atravessa. Portanto atravessa a minha subjetividade, a minha linguagem e aquilo que eu escrevo.

