Aumento da geração eólica e solar causa "trancos" no fluxo de eletricidade, diz especialista
Ex-diretor-geral da Aneel defende que linhas de transmissão precisam estar preparadas para fontes intermitentes
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Independentemente das causas do apagão que deixou praticamente todo o Brasil sem eletricidade na manhã desta terça-feira (15), a interrupção na rede de transmissão do Sistema Interligado Nacional (SIN) chama a atenção para uma mudança na composição da matriz elétrica brasileira, disse Jerson Kelman, ex-diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e ex-presidente da Light.
Em 2021, 56,8% da geração de eletricidade do país ficou com as usinas hidrelétricas, enquanto as usinas eólicas responderam por 10,6% e as placas solares ficaram com 2,5%. Dez anos antes, em 2011, as hidrelétricas ficavam com 82% da geração, as eólicas respondiam por 0,5% e as placas solares sequer apareciam nos dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal responsável pelo planejamento técnico do setor elétrico.
Segundo Kelman, com a geração eólica e solar, cresce a participação de fontes intermitentes na geração total de eletricidade do país. Por isso, o sistema de transmissão precisa se preparar para “trancos” no fluxo de eletricidade nas linhas. Embora o apagão desta terça-feira possa ter sido causado por vários outros fatores, como falha de equipamentos, Kelman defende a continuidade nos investimentos no SIN, levando as novas fontes de geração em conta.
A seguir, os principais comentários de Kelman sobre o apagão, feitos por escrito para alguns veículos de imprensa, entre eles O Globo:
A interrupção do fornecimento de energia pode ser por falta de infraestrutura?
Nessa altura, qualquer hipótese sobre a causa do blecaute é mera especulação. Todavia, é fato conhecido que o aumento da participação das fontes eólica e solar, principalmente no Nordeste, pode resultar em abruptas variações de produção local de eletricidade devido à flutuação dos ventos e/ou passagem de nuvens, causando “trancos” no fluxo de energia nas linhas de transmissão e na produção das hidrelétricas. Dito isso, repito, é cedo para saber o que de fato ocorreu nesse caso específico.
Esses 'trancos' no fluxo de energia ocorrem mesmo com os níveis dos reservatórios das usinas hidrelétricas nos maiores níveis dos últimos anos?
Não se deve confundir um problema de falta de água que resulta na incapacidade das usinas hidroelétricas de produzirem energia ao longo de, digamos, seis meses, problema que tivemos em 2001 e, novamente, em 2021, com a impossibilidade de compensar integralmente uma abrupta flutuação da produção das usinas eólicas e solares.
Dito isso, a potência das hidrelétricas (em MW) é maior quanto mais cheio estiver o correspondente reservatório. Ou seja, as usinas hidrelétricas do Nordeste, principalmente as da Chesf, têm mais capacidade de reagirem às flutuações de produção das usinas eólicas e solares do que se estivessem vazias. Porém, isso não quer dizer que conseguem compensar qualquer flutuação. Parte da potência para manter o sistema equilibrado terá que ser produzida por usinas hidrelétricas localizadas fora do Nordeste e transportada pelas linhas de transmissão.
A rede de linhas de transmissão está preparada para essa nova composição das fontes de geração?
O planejamento e operação do SIN são tarefas de extrema complexidade, realizadas com competência respectivamente pela EPE e pelo ONS. Quando há excesso de capacidade de produção de energia numa região, como é o caso do Nordeste, é preciso estudar qual a melhor alternativa, exportar energia ou atrair a demanda.
A Aneel estudou o assunto cuidadosamente e formulou uma regulação tecnicamente correta (com uma nova metodologia de cálculo das tarifas de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição, publicada em setembro do ano passado, a agência aumentou encargos para a geração de eletricidade no Norte e no Nordeste e para o consumo, no Sul e no Sudeste), que vem sendo questionada pelos proponentes do PDL 365, atualmente em tramitação no Congresso (um projeto de decreto legislativo para derrubar a nova metodologia da Aneel foi aprovado na Câmara em novembro e agora está no Senado). A meu ver, a Aneel está certa e o Congresso deveria limitar a sua atuação à formulação de políticas públicas, sem adentrar por temas eminentemente técnicos.
Caso a origem do problema que causou o apagão desta terça-feira esteja localizado na linha de transmissão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, isso teria relação com esses “trancos” no fluxo de energia?
Com base nessa informação, aparentemente, o blecaute teria resultado de falha em equipamento elétrico e não de abrupta variação da produção eólica e solar no Nordeste.

