Educação além do conteúdo: o desafio de aprender para a vida
Entre algoritmos e redes sociais, especialistas apontam que a escola precisa integrar tecnologia, currículo e competências socioemocionais para formar cidadãos críticos e solidários
Em tempos de inteligência artificial e redes sociais, a escola deixou de ser o único lugar onde se aprende e se faz perguntas. No feed, tudo é rápido, opinativo e muitas vezes raso.
Dentro e fora da sala, a missão de quem educa ficou mais complexa. Ensinar matemática, ciências e línguas continua essencial, mas já não basta.
A nova questão educacional envolve os dilemas entre ensinar e aprender para a vida: formar pessoas capazes de conviver, argumentar, decidir, trabalhar em equipe, sentir empatia, resolver problemas e lidar com a incerteza.
Nessa encruzilhada, especialistas concordam que é preciso articular currículo, cultura digital e desenvolvimento socioemocional desde a primeira infância até a formação técnica e superior.
Para Maria Elizabeth Varjal, coordenadora do Curso de Pedagogia, do Departamento de Inclusão e Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o grande desafio é que a escola vá além do domínio técnico e cognitivo.
“Tradicionalmente, as escolas se preocupam em oferecer leituras históricas, científicas e literárias do mundo, mas deixam de lado a linguagem tecnológica, hoje indispensável. As novas gerações precisam aprender a usar as tecnologias da informação e a inteligência artificial com competência e, sobretudo, com pensamento crítico. O risco é termos jovens preparados apenas para passar no vestibular, mas sem uma formação moral que sustente o progresso coletivo da humanidade”, afirma Varjal.
A coordenadora de Educação da UNESCO no Brasil, Rebeca Otero, reforça que esse equilíbrio é urgente diante da velocidade das transformações digitais.
“É essencial que as escolas cultivem habilidades que permitam aos estudantes lidar com esse cenário de forma saudável, consciente e ética. Pensamento crítico, empatia e colaboração são pilares para a formação de cidadãos resilientes e solidários”, destaca.
Segundo ela, não basta que essas competências sejam tratadas como atividades paralelas, precisam estar integradas ao currículo, desde a educação infantil até o ensino superior.
“As habilidades socioemocionais têm que ser bem trabalhadas para que os estudantes possam enfrentar a intensidade das informações digitais sem se abalar. É isso que garante autonomia, discernimento e responsabilidade ética no uso da tecnologia”, acrescenta.
Comunidade
Varjal lembra que, para que isso aconteça, o engajamento das famílias e gestores políticos é tão necessário quanto o esforço da escola.
“É preciso integrar, desde a educação infantil, práticas que já trabalhem questões de empatia, respeito, resolução de conflitos e cooperação. Isso pode ser feito em sala de aula, nas interações, nas rodas de conversa, nos trabalhos em grupo. Não basta incluir essas atividades apenas em datas comemorativas ou projetos pontuais. É necessário que sejam incorporadas ao currículo e avaliadas, assim como qualquer outra competência”.
Otero concorda e vai além ao apontar que a própria formação docente ainda é um entrave. “Muitos professores não se sentem preparados para integrar tecnologia e competências socioemocionais ao dia a dia da escola. Por isso, é fundamental investir na capacitação, dar condições de trabalho e valorização para que possam assumir esse papel de mediadores do conhecimento”, afirma.
Ela acrescenta que a valorização da carreira é tão importante quanto a formação.
“Os professores precisam ter salários dignos, tempo para planejar suas aulas e autonomia para pesquisar e inovar em sala. Além disso, é essencial que sejam ouvidos na formulação das políticas educacionais, porque quem está no cotidiano da escola sabe onde estão os maiores desafios e quais soluções fazem sentido na prática”, completa.
Desenvolvimento
Se os educadores destacam a importância de formar sujeitos críticos e se a UNESCO reforça a urgência de uma educação pautada em valores humanos e equidade, a perspectiva econômica acrescenta outro olhar: o da educação como motor de desenvolvimento social e estrutural.
Para o economista Luiz Otávio, a educação não deve ser reduzida à preparação para o mercado de trabalho, mas sim entendida como uma ferramenta coletiva de formação de cidadãos plenos, aproximando a escola da comunidade.
“Educação é prática orientada pela teoria e refletida na cultura em que está inserida. Por isso, o ensino deve colocar a escola na comunidade e a comunidade na escola. Nesse encontro, nasce o aprendizado pela experiência: um saber vivo, capaz de refinar os sentidos, ampliar a imaginação e potencializar a cognição. É nesse espaço que os alunos desenvolvem consciência crítica das transformações que vivem e ainda viverão”, explica.
O economista também chama atenção para os efeitos das tecnologias, em especial a inteligência artificial, na ampliação das desigualdades. “Quem estuda em escolas de melhor infraestrutura e cujas famílias têm mais renda acessa com mais facilidade os novos mecanismos digitais. Isso coloca esses estudantes em vantagem frente aos demais. Cabe ao Estado reduzir essas distâncias, garantindo ensino, equipamentos e qualidade pedagógica semelhantes entre as escolas. Caso contrário, o potencial da IA será apenas mais um fator de exclusão”, alerta.
Alerta
Essa preocupação é também um alerta, o uso excessivo e desorientado da tecnologia pode ser prejudicial ao desenvolvimento socioemocional. O Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023, da UNESCO, mostra que quando a tecnologia é utilizada sem finalidade pedagógica, acaba competindo com a capacidade de atenção, reflexão e convivência.
O caminho, segundo Otero, não está em afastar crianças e jovens das telas, mas em garantir que seu uso seja intencional e educativo. “O equilíbrio está em promover ambientes de aprendizagem que sejam interativos, colaborativos e emocionalmente seguros, onde a tecnologia sirva como ferramenta de apoio, e não como obstáculo”, defende.
Na avaliação da secretária de Educação Básica do MEC, Kátia Schweickardt, esse é também um compromisso do governo federal. Para ela, preparar os estudantes para o futuro de novas tecnologias é romper com a visão de que a escola se limita a transmitir conteúdos.
“Significa estimular pensamento crítico, empatia e colaboração desde a infância, entendendo que esses valores são tão importantes quanto matemática ou língua portuguesa. Por isso, temos construído políticas que não separam o acadêmico do humano, pois sabemos que o aprendizado só se completa quando envolve também o cuidado com as relações e com a formação cidadã”, afirma.
Segundo a secretária, programas como o Pacto Nacional pela Recomposição das Aprendizagens e a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) têm buscado integrar dimensões cognitivas e socioemocionais, apoiando professores e redes na consolidação de uma escola de desenvolvimento integral.
Tecnologia
Ela destaca ainda que a tecnologia ocupa um lugar central nessa agenda, mas precisa ser tratada como meio, e não como fim.
“A Estratégia Nacional de Escolas Conectadas organiza ações de conectividade, formação docente e recursos digitais, oferecendo um olhar sistêmico para garantir que professores e estudantes usem a tecnologia de forma criativa e responsável. Nesse processo, a inteligência artificial é vista como ferramenta capaz de potencializar o aprendizado, desde que guiada por princípios éticos e humanos”, explica.
Para que isso aconteça, a formação e a valorização docente aparecem como pontos-chave. O MEC, segundo ela, já disponibiliza mais de 80 cursos de tecnologia, além de uma especialização em Educação Digital que alcançou milhares de redes de ensino.
“O professor é o protagonista de qualquer processo de inovação na educação. É ele quem traduz a tecnologia em práticas pedagógicas e dá sentido ao uso dos recursos. Por isso, é fundamental apoiar sua formação e garantir condições dignas de trabalho”, reforça.
O terceiro setor também tem se debruçado sobre os desafios dessa transição. Para Maria Lucia Voto, gerente de conteúdos educacionais do Instituto Ayrton Senna, o aprender para a vida é conceito-chave da revolução na educação.
“Esse processo é justamente entender sobre o que chega a cada pessoa e como ela aprende com isso, como usa o que recebe. É preciso provocar a curiosidade, a criatividade e o pensamento crítico dos estudantes para analisarem o que está sendo ofertado, de que forma e como é possível aplicar. Isso os coloca no papel de protagonistas de sua trajetória dentro e fora da escola”, afirma.
Ela reconhece, no entanto, que ainda existe uma mudança cultural necessária para que escolas e famílias compreendam que habilidades socioemocionais e acadêmicas não são concorrentes, mas complementares.
“O desafio está em entender que esses conhecimentos podem ser desenvolvidos conjuntamente, em uma mesma atividade. É quando a teoria ganha vida na prática”.
Competências
Outro ponto, segundo a gestora, é ensinar crianças e jovens a lidar com frustrações e erros em uma geração acostumada à gratificação imediata.
“O erro faz parte do processo de aprendizagem, assim como os desafios e as frustrações. Trabalhar competências como persistência, tolerância à frustração e autoconfiança é oferecer ferramentas para que avancem mesmo diante das dificuldades”.
Para Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, a chave para avançar nesse debate está na consolidação da educação integral como um direito de todos os estudantes, especialmente em territórios vulneráveis.
“O papel da escola não é apenas desenvolver conteúdos cognitivos, mas integrar dimensões sociais, culturais, emocionais e físicas. Essa é a concepção que está prevista na Constituição, na LDB e na BNCC, e que precisa ser garantida na prática. A educação integral não pode ser vista como complementar, mas como finalidade central da escola”, afirma.
A dirigente lembra que, nesses contextos, a escola muitas vezes também cumpre funções de proteção social. Por isso, o diálogo com a comunidade se torna estratégico. “As organizações locais, as famílias e os equipamentos do território podem ampliar e complementar o trabalho pedagógico. Quando a escola articula essas parcerias, cria-se um ecossistema de aprendizagem mais rico, que fortalece a cooperação, o respeito e a cidadania”, defende.
No entanto, Altenfelder ressalta que a desigualdade ainda é um desafio decisivo. O acesso desigual a recursos tecnológicos e à infraestrutura escolar amplia a distância entre os estudantes.
“As condições socioeconômicas, o território e até mesmo a cor da pele impactam no acesso às oportunidades educacionais. É papel do poder público garantir que todas as escolas tenham condições mínimas semelhantes, inclusive em relação às tecnologias, para que o digital seja, de fato, um caminho de inclusão e não de exclusão”, alerta.
Alternativas
Para o Cenpec, a tecnologia deve ser tratada com cuidado, como instrumento educativo e não como fim em si mesma.
“Ainda não sabemos todos os efeitos da exposição às telas no desenvolvimento infantil. É preciso promover debates, alertar para riscos e, sobretudo, orientar crianças e jovens para um uso ético e protetivo da tecnologia. Isso deve ser feito com a participação das famílias e por meio do diálogo aberto dentro da escola”, explica Altenfelder.
A presidente também destaca o protagonismo dos estudantes como eixo central para uma educação que forme cidadãos críticos e autônomos. Experiências apoiadas pelo Cenpec mostram que, quando jovens são incentivados a identificar problemas em seus territórios e propor soluções, desenvolvem competências acadêmicas e socioemocionais de forma integrada.
“Ao pesquisar, debater e dialogar com a comunidade, eles aprendem a argumentar, a se responsabilizar e a construir coletivamente. Esse é o aprendizado que transforma vidas e fortalece comunidades inteiras”, conclui.
No cruzamento das visões de organismos internacionais, gestores públicos e organizações da sociedade civil, o consenso é claro: educar para a vida significa articular conhecimento acadêmico, competências socioemocionais e consciência cidadã.
O desafio, porém, está em transformar diretrizes em práticas consistentes, capazes de reduzir desigualdades e dar protagonismo a crianças e jovens em todos os territórios. Em tempos de inteligência artificial e mudanças aceleradas, a escola segue como espaço insubstituível de convivência, formação ética e construção coletiva de futuro.

