Lars Grael, um olhar crítico em prol do esporte
Velejador reclama da retirada de investimentos e lamenta chances perdidas com Rio-2016
Lars Grael está longe de se encaixar no estereótipo de um vitorioso atleta brasileiro. Descendente direto de velejadores dinamarqueses, ensaiou cedo uma aproximação com os mares. Seguiu as pegadas de seus antepassados e se tornou um dos maiores ícones olímpicos do País. Nem mesmo o trágico acidente sofrido enquanto praticava - perdeu a perna direita por imprudência de outro velejador - não diminuiu sua paixão pelas travessias oceânicas. Nascido em família abonada, não deixou que a boa condição financeira ou o brilho das medalhas ofuscassem seu olhar crítico para os problemas do esporte brasileiro. Muito pelo contrário. Lars é uma voz atuante entre aqueles que defendem uma reformulação profunda na maneira como os desportos são geridos no Brasil.
De passagem rápida pelo Recife - por conta da 29ª edição da Regata Internacional Recife-Fernando de Noronha - o duas vezes medalhista de bronze olímpico parecia prever o caos que se instaurou no Comitê Olímpico Brasileiro nos últimos dias. Como se sabe, o presidente da entidade, Carlos Arthur Nuzman, foi preso por pagamento de propinas na escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016. E é o COB um dos maiores alvos da indignação de Lars Grael. Entre outros assuntos, o veterano analisou o futuro da vela no Brasil e bateu forte na retirada de investimentos do Governo Federal nos esportes. Além disso, disparou contra o clientelismo entre dirigentes de federações e confederações esportivas, lamentou a falta de planejamento na Rio-2016 e vociferou contra o chamado "legado olímpico". Confira mais a seguir:
PAIXÃO PELOS MARES
"Velejo por paixão e o tempo todo. Estou sempre competindo, quase sempre na classe Star, mas a vela oceânica tá sempre perto e quando dá, coloco na agenda. Em termos de custo-benefício, de prazer, a Refeno é imbatível. A regata Santos-Rio é muito mais cansativa. É uma regata costeira. A Refeno é mais 'previsível', é em linha reta, mais prazerosa. Você vai de Recife até Fernando de Noronha em um percurso maior, numa travessia oceânica. Outro diferencial é você chegar no paraíso. Nada contra o Rio de Janeiro, que é uma cidade especial, mas Fernando de Noronha é um pedacinho do paraíso. "
LEGADO OLÍMPICO
"O legado deixado foi muito pequeno. O Rio de Janeiro recebeu um legado urbano, pago por todos nós, cidadãos brasileiros, de mobilidade. O legado esportivo é negativo, porque se você for ver, o orçamento do Ministério do Esporte que está sendo proposto para 2018 é inferior ao de 2005. Está havendo um desmonte, um canibalismo das estruturas esportivas, o que é ruim, porque se era para fazer investimento, que fosse algo sustentável, planejando metas e resultados. Não se faz potência olímpica em quatro anos. Todo mundo sabe disso. Fico muito triste de os dirigentes terem visto isso como uma simples aventura de verão, que foi a Rio-2016 e o esporte cair num patamar de relevância mais baixo. Nessa última Olimpíada, 2/3 das medalhas que o Brasil teve foram de atletas militares, que receberam apoio do programa Forças do Esporte, sobretudo do Exército, Marinha e Aeronáutica. Esse pessoal teve todo um apoio do Ministério da Defesa, de recursos orçamentados primeiro no esporte. Esse ano houve um corte quase que integral do orçamento. O calendário esportivo militar era de cerca de 70 eventos para participar e o Brasil participou de cinco. O Brasil nos Jogos Mundiais Militares de 2011 foi número 1 no quadro de medalhas, no Rio de Janeiro. Depois, na China, ficou em segundo. Ganhar da Rússia e dos Estados Unidos não é qualquer coisa. Ou seja, houve um crescimento sustentável. Neste ano, tiraram o 'fio da tomada' do esporte militar e eu acho uma pena isso, porque tem que ter coerência. É a mesma coisa de eu investir uma fortuna semeando para plantar uma safra e logo depois eu não regar a semeadura. Vai perder tudo"
ENTIDADES ESPORTIVAS
É uma pena por dois aspectos. Primeiro porque o País olha sempre no curto prazo. Quando o Brasil resolveu sediar Jogos Pan-americanos, Olimpíadas, Copa do Mundo o esporte estava no auge da moda. E aí havia sempre aquele discurso: 'Brasil, potência olímpica'. Ufanismo patriótico. Não se constrói uma potência olímpica no curto prazo. Ninguém fez isso. Para conseguir isso, o que você faz: investe, sobretudo, em educação, valorização da educação física na escola, o esporte educacional até você chegar à formação do atleta a ter um mais alto rendimento. O Brasil fez um investimento relevante no esporte até a Rio-2016. Agora, parece até Cinderela, que depois da meia-noite volta a ser a Gata Borralheira, porque o esporte saiu da agenda. Tá errado! Um país que deseja ser uma potência olímpica tem que ter uma coerência nos investimentos. Hoje, é preciso qualificar os gastos. Tem que investir no nível de governança das entidades esportivas, melhorar a qualidade de gestão, dos gastos dos recursos públicos. Agora, simplesmente 'desidratar' o Ministério do Esporte, deixando um orçamento basal, que é pra manutenção da entidade, e pro investimento do esporte praticamente nada, não existe.
DESUNIÃO NO ESPORTE
"Eu vejo a Cultura muito mais unida. Toda vez que se retira algum benefício ou investimento, a classe da cultura, não importa a matiz artística, política ou ideológica, o pessoal se une, xinga, exige, faz protesto e o governo quase sempre recua. No esporte, não. O atleta, embora seja o protagonista da atividade esportiva, ele sempre tá subordinado a um clube, uma federação, uma confederação, um comitê... Então ele deixa que eles façam por ele. Até porque se ele tiver voz demais, alguém vai lá e 'corta'. É uma classe que, embora muitos tenham consciência, é desunida. Tá faltando união no esporte para a gente definir o que a gente quer. Para ter isso, o esporte tem que se unir mais. Não em torno de pessoas, tem que ter um sentimento de classe em defesa de um bem público, que é o esporte nacional. Muitas vezes em disputa de incentivos fiscais, o esporte se vê em confronto com a cultura. Hoje em dia eu admiro a cultura, porque cada vez que vão tungar benefícios pelo Ministério, os caras fazem um alarde nacional e revertem. No esporte não tem isso. Ficam lamentando à boca pequena e nada acontece"
CICLO OLÍMPICO
"Ele está parcialmente prejudicado e 2017 é um ano praticamente perdido para o esporte brasileiro, salvo exceções. Se em 2018 nós conseguirmos resgatar o nível de investimento nas preparações das equipes olímpicas e paralímpicas, o trabalho de formação, mesmo com um hiato, se recupera. O que tá se aproximando é um cenário em 2018 pior do que em 2017. Aí sim poderemos afirmar que 2020 está comprometido. É preocupante"
FUTURO DA VELA BRASILEIRA
"A Federação Internacional de Vela fez alterações nas classes olímpicas. O perfil dos barcos nos últimos anos mudou. Antes eram barcos que tinham quilha fixa, velejadores com mais experiência, portanto mais idade, velejadores mais pesados e a World Sailing fez um perfil de barcos mais ligeiros, mais leves, para gente mais jovem, o que obriga cada Federação Nacional a mudar o perfil de formação do seu atleta, para priorizar uma equipe jovem. A equipe brasileira viveu um apogeu. Um período de ouro, com Torben Grael, com cinco medalhas, Robert Scheidt, com cindo medalhas, eu ganhei duas medalhas, Bruno Prada, Marcelo Ferreira... Essa geração passou, em termos de classes olímpicas. O único remanescente dessa geração de ouro é Robert Scheidt, que tá tentando sempre se reinventar. Foi do Laser para o Star, do Star voltou para o Laser, agora tá no 49. Difícil, com a idade dele, ter muito espaço para velejar na vela profissional em categorias olímpicas. Mas ele é um velejador totalmente fora do padrão, muito acima da curva e sempre demonstra capacidade de chegar lá. No Rio de Janeiro, ele com 43 anos de idade, ser quarto lugar na classe Laser, e Laser é classe para garoto, ele é realmente um cara sobrenatural. Então a perspectiva dele para 2020 não é muito positiva, embora não possa duvidar da capacidade dele. Tem que ver a geração nova. Martine e Kahena se mantém no topo mundial da classe 49. Voltarão ainda como favoritas para 2020. Sobre o restante da equipe, o Jorge Zarif hoje é um velejador mais maduro. Ainda falta um algo a mais nele para poder ser um medalhista, mas o Jorginho foi bicampeão mundial juvenil, campeão mundial sênior, na classe Finn, deu uma caída um pouco antes da Olimpíada, foi quarto lugar na Olimpíada, perto da medalha de bronze, e agora eu acho que ele está com mais maturidade para poder ser um candidato em 2020. Eu acredito nele. Outras classes está havendo renovação. Patrícia Freitas na RSX Feminino é uma esperança e estamos vendo outras classes como é que vão evoluir"
CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DO COB
"Não é um objetivo na minha vida. Pode acontecer, mas não coloco como objetivo da minha trajetória, até porque o estatuto do COB é um estatuto conhecido. Para você estar elegível à presidência do COB tem que ser presidente de uma confederação nacional por cinco anos consecutivos. Ou seja, tem que estar no segundo mandato. Ou fazer parte de um conselho permanente, com quatro ou cinco integrantes, do qual eu não faço parte. Portanto, nem elegível eu sou. É uma coisa muito distante. Acho que o COB talvez mereça uma democratização dele. Mas, nesse momento, eu sequer tenho chances. Acho que deveria haver uma mudança no estatuto. O atleta tem que ter uma participação mais efetiva. Passou-se a época que o atleta era aquele cidadão que nasceu com uma aptidão física, mas talvez não teve o nível intelectual para ser um grande profissional numa área acadêmica. Criavam esse clichê em cima do atleta como forma de excluir a participação dele. Em qualquer atividade profissional no Brasil, se você é um jornalista, o conselho regional de jornalismo, você que está credenciado, tem acesso. Assim é com advogado, arquiteto, médico, enfermeiro, dentista...A única atividade onde o protagonista da atividade não tem voz de participação é o esporte. O cidadão elege no seu município o prefeito e o vereador. No seu Estado, deputado e governador. Na União, deputado federal, senador e presidente. O atleta às vezes não elege nem o comodoro ou presidente do seu clube, a não ser que ele seja sócio. Muito menos o presidente da federação estadual ou confederação brasileira ou do comitê. Eu acho que temos que ter um nível de participação maior. Nada contra o poder das confederações que fazem parte dos comitês olímpico e paralímpico, mas acho que árbitros, treinadores e sobretudo o atleta têm que ter uma voz representativa maior. Quanto maior a base de votos, menor será o clientelismo. Hoje em dia tem confederações com quatro federações ativas, então com três votos você ganha. Aí eu filio uma federação lá de Roraima, dou para o cara um cargo para dirigir a delegação nos Jogos da Juventude, para o cara passagem de classe executiva e ganhei o voto dele. Então esse 'toma lá, dá cá', se você tem uma base de votos que, em vez de ser quatro, vira 70, fica mais difícil se eleger. O cara tem que mostrar resultado. O comitê Olímpico do Brasil pode melhorar onde? Mudando o estatuto? Tem que se criar um padrão de governança nas entidades esportivas para separar o joio do trigo? Não. Temos que exigir que o esporte tenha um mínimo de investimento. Tá faltando essa união setorial. Um corporativismo saudável"
FUTURO DO ESPORTE NACIONAL
"Talvez essa desidratação de recursos seja um momento para fazer uma freada para uma nova ordem. Uma freada de arrumação. Uma coisa que seja mais transparente, que tenha mais controle, mais participação, um novo modelo de governança. A Grã-Bretanha foi um grande exemplo. Primeiro país que sediou uma Olimpíada e na Olimpíada seguinte teve um crescimento no quadro de medalhas. Ali foi feita uma coisa planejada. O país desejou querendo ser uma potência olímpica. Já estavam num nível razoável. Fizeram um investimento de base consistente, aprimoraram a gestão, criaram para cada modalidade esportiva formas de aferir metas e resultados e investimentos, a ponto de competirem fora de casa, sem o efeito arena ou efeito torcida, e ter um desempenho melhor. É para aplaudir os caras. É muito bonito, isso. Seria um espelho para o Brasil. Se o Brasil conseguir repetir em Tóquio o que fez no Rio é para abrir um champanhe. Eu acho difícil. Da forma que se apresenta agora, eu acho difícil. A não ser que tenha uma virada de jogo".

