A cultura do cancelamento se revela por meio de várias faces
O movimento de expor pessoas por suas falas ou seus comportamentos pôde dar voz a estruturas antes silenciadas
Nos últimos anos tornou- se uma prática comum anular as pessoas nas redes sociais. Quase diariamente são promovidos boicotes por conta de comportamentos tidos como inadequados. Tanto que "cultura do cancelamento" foi eleito o termo do ano, em 2019, pelo Dicionário Macquarie. No entanto, especialistas afirmam que, apesar de a expressão ser contemporânea, a prática é antiga e faz parte do âmago social. Historicamente, inúmeras vozes não tiveram a oportunidade de manifestar suas opiniões, sendo silenciadas e excluídas.
Segundo o professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Érico Andrade, o cancelamento pode ser visto por vários prismas. “Um deles consiste em desacreditar uma pessoa porque ela pensa diferente de você. É uma prática corrente no mundo contemporâneo por conta das redes sociais cujos algoritmos são responsáveis por formar bolhas. O cancelamento funciona também sob uma ótica de rebeldia de vozes que foram silenciadas e agora usam o seu micro poder de cancelar alguém para contrapor-se a um poder hegemônico e posições que ferem a diversidade das pessoas”, disse o filósofo.
O problema é quando o cancelamento passa a ser válvula de escape e interrompe o diálogo. Basta alguém, famoso ou anônimo, ousar cometer um deslize para virar alvo de uma enxurrada de mensagens de ódio. Como a maioria dos usuários da internet acha que ela é uma terra sem lei, muitos viram júri, juiz e executor. Não falta quem se sinta no direito de calar a voz do outro e fazer justiça com as próprias mãos, deixando de lado importantes garantias constitucionais, como a presunção de inocência e o direito à ampla defesa.
Torcedora do Santa Cruz, a estudante Vitória Evely, 20 anos, já foi alvo de uma tentativa de cancelamento nas redes sociais por conta de comentários sobre partidas de futebol entre o time pernambucano e o Fluminense, do Rio de Janeiro. A jovem afirma que após fazer uma postagem apoiando o Santa e afirmando que a torcida tricolor não deveria ter medo de clubes do Sudeste não demorou para vários cariocas começaram a atacar, xingar e até mesmo ameaçar, dizendo que iriam encontrá-la em qualquer lugar.
“Eu comecei a ficar com medo, me sentir impotente. Até pensei em apagar meus perfis nas redes sociais, mas meus amigos me deram força e conselhos para lidar com a situação”, lembra. Para a estudante o lado cruel do cancelamento é o de não permitir que quem está no alvo se explique. Ela acredita ainda que o fato de ela ter sido mulher foi um agravante para os ataques. “Meus amigos fizeram comentários parecidos com o meu e não sofreram as mesmas investidas. É mais por like e pelo o que vão achar, pela repercussão que vai ter. Tudo por alguns segundos de fama e aumentar o número de seguidores”, avalia.
Em muitos casos a cultura de anular o outro costuma ter efeitos imediatos trazendo à tona certa intolerância e tornando o ambiente virtual hostil, seletivo e até mesmo injusto. Para o filósofo Érico Andrade, esse suposto autoritarismo revela uma falta de educação no que diz respeito ao modo que nos portamos no espaço público para o debate acontecer. “É um risco que está presente em qualquer relação humana em que as pessoas podem falar de forma aberta e deliberada. Então, nesse sentido o cancelamento pode ser violento porque pode dar voz a pessoas que não foram educadas para o debate público”, comenta.
Em artigo publicado na internet, o doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt (Alemanha) Filipe Campello, alerta que a cultura do cancelamento entra em curto-circuito com três aspectos que para ele caracterizaram os movimentos identitários. “No lugar de uma crítica social, passa a predominar uma lógica de cancelamento dirigida aos próprios indivíduos; ao invés de reconhecimento de direitos, o punitivismo baseado numa lógica moralista; e, ao contrário da possibilidade de aprendizado e mudança, a pressuposição de uma espécie de essencialismo atemporal”, compara Campello, que também é professor de filosofia da UFPE.
O filósofo e professor da UFPE Érico Andrade destaca que o foco desse debate deveria ser a educação. “Ou seja, como educar pessoas para que não apenas cancelem aquilo que discordam, mas que elas possam construir possibilidades por meio das quais possam divergir de forma mais democrática. O desafio que essa cultura do cancelamento coloca para a gente é pensar numa ampliação dos processos pedagógicos educacionais que permitam que a gente quebre com essa inviabilidade do diálogo que vem sendo alimentada pelas redes sociais”, afirma.

Diálogo
Há cerca de dez anos, a fashion designer e digital influencer Laurinha Marinho, 33 anos, utiliza as redes sociais profissionalmente. Recentemente, ela foi alvo de comentários agressivos após se envolver em uma polêmica com outro blogueiro pernambucano. Mas foi outro tipo de cancelamento que mais a marcou. Há alguns anos ela foi vítima de xenofobia, um tipo de preconceito caracterizado pela aversão, hostilidade, repúdio ou ódio aos estrangeiros. “Uma mulher fez postagens falando mal do Nordeste e diminuindo meu trabalho. Ela afirmou que por eu ser blogueira nordestina não prestava”, lembra.
Assim como toda figura pública, Laurinha afirma ter consciência que quanto maior a exposição mais alta a possibilidade de ataques. “A cultura do cancelamento é meio volátil. As pessoas mudam de ideia muito rápido na internet. Anitta, por exemplo, é cancelada todos os dias e continua com uma carreira ascendente”, diz Laurinha. A fashion designer fala ainda que não se policia em relação ao que diz e pensa, mas com a maneira que fala. “Trabalho meu temperamento porque muitas vezes sou agressiva na hora de lidar com certas situações”, confessa.
Na pressa de se posicionar muita gente esquece de ter senso crítico e investigar os fatos a fundo. “É quase como se a gente tivesse que responder a todo tempo a algo, ter uma opinião sobre tudo a todo momento. Claro que isso também vai gerar uma série de incorreções, de violências, de bobagens porque não dá para ter uma opinião sobre tudo o tempo todo e muito rápido. Então já temos esse ambiente pouco afeito à própria escuta porque está todo mundo gritando alguma coisa”, pondera a jornalista Fabiana Moraes, docente de Comunicação Social do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE.
Fabiana Morais ressalta que em alguns casos o cancelamento é responsável pela promoção do debate, pois coloca em foco questões que passaram séculos sem ser levadas em consideração e precisam de uma discussão ampla. “Por exemplo, quando você vai falar sobre questões de gênero e raciais muita gente já acha que é uma lacração, ou como se fosse um debate menor. Se você vai realizar uma discussão sobre isso é uma maneira de cancelar o outro a partir do momento que você o questiona”, comenta.
Ela lembra que o debate é saudável, necessário e importante no ambiente democrático. “A vida normal é feita de dissenso, de discordar, discutir e aprender. Se todo mundo ficasse falando a mesma coisa, todos concordando, estaríamos vivendo em uma sociedade de zumbis. Precisamos discordar até porque para a gente avançar é na discordância e no acerto. É assim que a sociedade vive”, acrescenta a professora. É preciso entender que mesmo por trás daquela crítica muitas vezes mal formulada e, em alguns casos, violenta pode haver um sentido que nos faça refletir sobre como a gente deve reorientar nossas ações para respeitar sobretudo as diferenças.
No entanto, a jornalista alerta que nem tudo pode ser visto como cancelamento. É preciso ter cuidado com o uso dessa palavra, pois para ela em alguns casos o que existe é um delicado jogo de poder. “Temos um grupo que sempre foi extremamente cortejado socialmente, com espaço para fala e visibilidade. Quando esse grupo precisa dividir o palco com outros atores sociais ele se ressente e chama muitas vezes de cancelamento. Todos os artigos que vi nos últimos meses de pessoas contrárias a esse movimento foram de pessoas universitárias, brancas”, afirma.
Saúde mental
Se de um lado há quem se diverte e ganha seguidores a cada linchamento virtual, do outro há quem perde a saúde mental, pois os ataques são virtuais, mas as consequências são reais. Muitas pessoas que passam por esse processo de cancelamento são demitidas. Em casos mais graves tiram a própria vida, como aconteceu com uma blogueira de 24 anos, do Rio de Janeiro. Tudo começou depois que a jovem foi abandonada pelo noivo e resolveu casar consigo mesma e compartilhar os preparativos para a cerimônia com os seguidores. No entanto, ela recebeu uma série de ataques de pessoas a acusando de criar toda a situação.
Para o social media Carlos Eduardo Mélo, as redes sociais amplificam comportamentos e ideias, seja positiva ou negativamente. No entanto, ele alerta que alguns movimentos não têm equilíbrio e as noções de certo e errado acabam se perdendo. “As pessoas são canceladas na família e em rodas de amigos porque deixa-se de olhar o outro lado e ponderar se determinadas ações ou declarações são antigas e a pessoa buscou melhorias”, comenta, acrescentando que quando alguém se enche de verdades o diálogo não acontece.
O psicólogo clínico Fernando Cruz, que também é conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco 2ª Região (CRP-02), afirma que o problema se intensificou ainda mais nesse período de pandemia por se tratar de um período de isolamento no qual estão todos em casa, em produção altamente dependente da internet, seja para o trabalho, para os estudos ou para interação com os familiares e amigos. “Como o meio virtual se tornou ainda mais relevante para constituição das relações, ser cancelado nesse ambiente nas atuais circunstâncias é um ainda mais violento”, comenta o profissional.
Fernando Cruz explica ainda que as consequências dependem da forma como cada ser humano lida com o cancelamento e a intensidade dos ataques na internet. De acordo com o psicólogo, a cultura do cancelamento pode desencadear ou acelerar alguns transtornos mentais. “Somos seres sociais e qualquer tipo de isolamento forçado pode causar uma ruptura dissociativa, a pessoa realmente entrar em surto ou passar por um processo de depressão, crise de ansiedade”, conta.
Para lidar com esta situação o psicólogo afirma que para algumas pessoas pode ser mais saudável se colocar à disposição para o debate do que se isolar. “Por outro lado, o corte com esse movimento de agressão é um movimento de autopreservação de suma importância para que o indivíduo consiga se estruturar”, fala. Fernando Cruz ressalta que o tratamento psicológico é fundamental nesses momentos. “É justamente no espaço terapêutico, um espaço de segurança e acolhimento, onde a pessoa vai conseguir se expressar, trabalhar essa dor e entender o que significa para ela, conseguindo se reconstituir ao longo do tempo”, fala.

