Seg, 22 de Dezembro

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As vidas conjugadas nas ruas sem saída

No Recife, algumas vias preservam costume antigo de vizinhos que se conhecem as vidas uns dos outros intimamente e compartilham o espaço público

Os moradores estão sempre disponíveis para ajudar os vizinhosOs moradores estão sempre disponíveis para ajudar os vizinhos - Foto: Anderson Stevens

Quando cai a tarde, já no comecinho da noite, na rua Brasilândia, localizada próximo ao Mercado do Cordeiro, na Zona Oeste da Capital, é praxe alguém puxar uma cadeira da varanda e sentar na calçada ou meio fio em frente de casa. Não demora muito, aparece um filho, um neto, uma vizinha, e a conversa se estende e ganha a noite, dando ares de vida em cidade de interior, onde a vizinhança se conhece intimamente e compartilham amenidades enquanto as crianças brincam na rua sem medo de nada.

A razão para que os moradores ainda cultuem esse costume é o fato de a rua Brasilândia ser sem saída, formada por casinhas conjugadas, separadas apenas por paredes. Basta chegar na rua Brasilândia para perceber o clima amistoso entre os moradores. A aposentada Elbanita de Oliveira e Silva, a Dona Nita, que o diga. Atualmente, com 82 anos e morando há 50 na casa de número 56, ela é uma das mais antigas do lugar.

“Aqui é como uma família. A gente acorda, dá bom dia para o vizinho. Boto a minha cadeirinha de balanço e quando a conversa está boa, a gente vai dormir lá pelas 2h da manhã. É uma paz danada”, conta. E quando chega o fim de semana, cada um traz uma bebida e um tira-gosto para embalar um bom papo. Em outras épocas, conta Dona Nita, os vizinhos chegavam a sortear qual era a casa da vez para receber a “bebedeira” até o amanhecer. A rua é formada por 45 residências. Por lá, até o hábito de pedir aquela uma xícara de açúcar ou farinha na porta do vizinho foi conservado.

“É colorau, é açúcar, óleo, farinha, cuscuz. Tem tempo ruim aqui não. É só bater na porta e a gente se ajuda. É tudo família mesmo. Dia desses, pedi um pacote de cuscuz. Mas, já paguei com outro pacote”, brinca o filho de Dona Nita, o autônomo Douglas Oliveira, 60. De tanta união, criou-se, em 2006, um bloco de Carnaval voltado às crianças, com direito a estandarte: o Frevolândia Kids. São colocadas mesas, cadeiras, mangueira para a garotada brincar com a água e, enquanto os pequenos se divertem fantasiados, os adultos bebem e comem. “Não precisa ir atrás de bloco, se a gente mesmo faz a festa”, afirma Douglas.

Neste sábado, eles vão fazer a “noite do hambúrguer”. “A gente mesmo criou. Cada um contribui com R$ 5, compra carne moída e faz hambúrguer. É por isso que eu não me mudo nunca da Brasilândia. Todo mundo unido. Ninguém se acha melhor do que ninguém. Vivemos em comunidade mesmo”, declara a moradora Suely Carvalho, 62, enquanto distribuía brigadeiros feitos por ela às crianças da rua e outros vizinhos que chegavam perto. Ainda na Zona Oeste, a rua Vertentes dos Lírios, no bairro da Várzea, também parece um pedacinho do Interior instalado em meio à cidade. Lá o clima é tão amigável quanto o da rua Brasilândia. Mas, a interação entre os vizinhos não fica apenas entre as cadeiras colocadas na calçada. Quem vê a rua nem imagina o quão ela fica bonita quando está enfeitada para as festas de São João e Natal.

Morador há 24 anos, José André Soares, 45, sempre mostra, orgulhoso, as fotos para quem é de fora. A vizinhança coloca a mão na massa para decorar a Vertentes dos Lírios com uma temática diferente a cada ano. “Mal acabaram as festas juninas e já estamos providenciando a decoração do Natal. Todo mundo que vem para cá, fica bestinha com a rua. Não é porque fazemos, mas fica linda mesmo”, declara, adiantando que dia 22 de dezembro já será possível ver a decoração. Essa dedicação à rua até rendeu bons frutos. No ano passado, a rua Vertente dos Lírios foi uma das vencedoras do concurso “Eu Amo o Natal”, promovido pela Prefeitura do Recife. Ela conquistou o segundo lugar numa votação que escolheu as ruas com a decoração natalina mais bonita e criativa da Cidade. Foram 2.748 votos que colocaram a Vertente dos Lírios entre as vencedoras. Como premiação, os moradores ganharam uma festa de réveillon com direito a uma banda, show pirotécnico, palco completo e estrutura de iluminação.

“Parece até uma maratona. A gente faz cotinha, vende rifa, tudo para arrecadar dinheiro para deixar a rua enfeitada. Quando a gente cansa de trabalhar, a gente para um pouco para jogar conversa fora, preparar um lanchinho e tomar um café para ter disposição de continuar”, conta André. Indo para a Zona Norte, o bairro de Casa Amarela também tem histórias para contar. O Beco da Alegria faz jus ao nome. E se depender de Maria Lourdes Nascimento, a Lourdinha, de 56 anos, tristeza não tem vez. É ela quem organiza as festas no beco. É Carnaval, Dias das Mães, São João, Natal, Ano Novo. Até quando teve Copa do Mundo, ela se empenhou junto a outros moradores para enfeitar todo o beco com as cores verde e amarelo. Nascida e criada na casa de número 47, construída pelo seu pai, foi dele que Lourdinha herdou esse “espírito festeiro”.

“Lembro que, quando criança, Papai estacionava a picape dele perto de um poste que tinha e convocava, num alto- falante, toda a comunidade a participar das festas que dava aqui, no Beco (da Alegria)”, relembra. Assim como Lourdinha, o aposentado Jorge José de Lima, 86 anos, também é um dos moradores mais antigos do Beco da Alegria. Para ele, viver esses momentos é uma raridade em meio à insegurança em que vive o mundo. “O mundo está tão violento, que vivenciar esses momentos de alegria faz você esquecer um pouco dos coisas ruins que acontecem lá fora. E enquanto Deus me der saúde e minhas pernas aguentarem, vou seguir participando de tudo que é festa que Lourdinha faz no beco”, declara. E já tem vizinho batendo na porta de Lourdinha para saber se começaram os preparativos para o Natal.

“Faço uma cotinha para comprar a decoração, contrato músico, alugo mesa, cadeira e cada um que traga um pratinho. Sem esquecer do amigo secreto. Já teve até homem que tirou uma calcinha na brincadeira”, conta. A palmeira em frente à casa dela, transforma-se numa árvore de Natal. “Festejar também é uma forma de fortalecer a nossa amizade. Vem gente até de outros becos para cá se divertir com a gente. Não tem beco mais animado que esse. A anarquia vai até de manhã”, garante Lourdinha. Mesmo com todo o trabalho que dá, o que faz ela prosseguir com essa ideia é uma só: amor. “Sei que, se papai estivesse vivo, ele iria gostar de ver. Se no dia a dia, a gente brinca um com o outro, são nas festas que a gente se diverte ainda mais. É correria, tem estresse, mas vale a pena”, declara.

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