Com ingerência explícita de Trump, Brasil e Estados Unidos vivem pior momento da relação diplomática
Episódios do passado envolveram crises comerciais e políticas, mas nunca de forma tão escancarada e multifacetada quanto agora, avaliam pesquisadores
Conhecedores da história da política externa brasileira e do elo bicentenário entre Brasil e Estados Unidos afirmam, sem titubear, que o momento atual é o mais crítico de uma relação bilateral que acumula crises.
Apontam, ainda, que jamais houve uma ingerência tão escancarada dos americanos na política doméstica brasileira como agora, sob a batuta de Donald Trump.
Em alguns casos do passado, a reação por aqui também foi de apelar para a soberania nacional, como faz agora o presidente Lula (PT). Entre os componentes que conferem peculiaridade à crise vigente está a falta de canal entre Planalto e Casa Branca.
A carta em que Trump anunciou as tarifas de 50% sobre produtos brasileiros já havia sido considerada uma forma brusca de intervenção por associá-las ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), réu por ter orquestrado uma tentativa de golpe de Estado para impedir a posse de Lula.
Na semana passada, a interferência ficou ainda mais explícita quando Trump acionou contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Lei Magnitsky, criada a fim de punir supostos violadores de direitos humanos.
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— Não tenho a menor dúvida em afirmar que é o ponto mais baixo nos mais de 200 anos de relação entre Brasil e Estados Unidos — afirma o embaixador Rubens Ricupero, autor de “A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016”.
O ineditismo de agora, observa o diplomata de 88 anos que chegou a ser embaixador naquele país, passa por quão cristalina é a ingerência americana:
— Há uma interferência aberta nos assuntos de soberania de maneira pública e reiterada.
Referência nos estudos sobre a relação entre os dois países, o professor da FGV Matias Spektor segue a mesma linha. Sim, diz ele, os EUA intervieram no Brasil em outros momentos decisivos, como o golpe de 1964 e a Revolta da Armada, quando o presidente Floriano Peixoto contou com ajuda americana para lidar com os revoltosos da Marinha. Mas nada se deu de forma tão escancarada como agora.
— Esta é a principal ingerência dos EUA na política interna brasileira dos últimos 60 anos — diz. — Agora, no entanto, como sabemos da demanda por terras raras e minerais críticos, há também uma desfaçatez.
Ao longo da História, houve outras crises políticas e comerciais. Depois da Revolta da Armada e do golpe de 1964, que se encaixam na categoria de ingerência, o momento de maior estresse se deu nos governos do general Ernesto Geisel (1974-1979) e do americano Jimmy Carter (1977-1981). O democrata chegara à Casa Branca depois de mencionar em campanha as violações de direitos humanos no Brasil durante a ditadura, causa sobre a qual a primeira-dama Rosalynn Carter se debruçou.
— Quando Carter criticou a situação dos direitos humanos no Brasil, o governo ditatorial do Geisel teve como reação abandonar unilateralmente o acordo de cooperação militar que os países tinham desde 1952 — explica Spektor.
'Soberania'
Revisitar a História permite ver que nos episódios de estremecimento da relação o embate com os americanos fortaleceu os governos brasileiros, que apelaram à defesa da soberania nacional. A narrativa contra um inimigo externo foi capitalizada por chefes de Estado civis e militares, e o caso de Geisel foi dos mais explícitos.
Antes mesmo da posse de Carter, o polonês Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, afirmou que o memorando nuclear entre Brasil e Alemanha era “o pior exemplo da má diplomacia” e “uma bofetada na cara do povo americano”.
A tensão entre Carter e Geisel elevou-se ainda mais com a questão dos direitos humanos. Em 1977, Rosalynn se reuniu no Brasil com figuras como o cardeal Paulo Evaristo Arns e recebeu denúncias sobre tortura. No ápice da crise, a gestão Carter enviou ao Brasil um relatório de violações elaborado ainda durante o governo Gerald Ford (1974-1977). O documento foi devolvido aos Estados Unidos por decisão do então chanceler de Geisel, Azeredo da Silveira.
— O embate com Carter fortaleceu Geisel e propiciou, entre os militares, uma mudança de visão. Ficou claro que era preciso diversificar as relações do Brasil. Esse processo deu espaço para a abertura democrática no país — afirma Regina Soares de Lima, professora do Iesp-Uerj.
Para Lima, que conduziu longas entrevistas com Silveira sobre o período no Itamaraty, o acordo nuclear com a Alemanha tinha sentido estratégico para os militares, e o que estava em jogo, assim como agora, “era a soberania brasileira”.
A reação do governo Geisel foi das mais fortes vistas até hoje, o que fortaleceu o general na caserna.
— O principal elemento que fortaleceu Geisel perante os militares foi a política externa. Ele chegou a declarar o sionismo como uma forma de racismo. Eram formas de mostrar autonomia e independência — aponta João Daniel Lima de Almeida, professor de política externa brasileira da PUC-Rio.
Relação que requer diálogo
As vísceras expostas no embate Geisel-Carter não impediram que os presidentes posassem para mais de uma foto juntos. Pesquisador em Harvard e titular da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos do Planalto no governo Michel Temer (MDB), o cientista político Hussein Kalout observa que a falta de diálogo entre Planalto e Casa Branca é um dos fatores mais inéditos da tensão de hoje.
— A relação com os EUA requer muita habilidade, muito pragmatismo para que sempre se mantenha equilibrada e estável. O Brasil não tem vocação para alinhamento automático nem para submissão aos interesses de Washington. Já os Estados Unidos não deveriam olhar para o Brasil como um país que pretende atuar num bloco antagônico aos interesses ocidentais ou americanos — diz.
Na visão de Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV EAESP, todas as crises com os Estados Unidos estão relacionadas à percepção, por parte dos americanos, de que o Brasil está “dando um passo maior do que a própria perna” na busca por autonomia. Ele evoca tensões da década de 1980, exclusivamente comerciais e que levaram à abertura da Seção 301, que permite aos EUA investigar e retaliar nações com práticas comerciais consideradas injustas. Trata-se do mesmo dispositivo ativado agora para investigar o Pix.
— Toda vez que o Brasil coloca asinhas de fora, buscando sair da esfera natural de influência norte-americana, os Estados Unidos reagem — afirma Casarões.
Outros desgastes
Outros momentos críticos do passado vão do algodão ao espaço. Em 1987, na esteira do Programa Espacial Brasileiro, buscava-se construir um veículo lançador de satélites (VLS), que poderia virar um míssil teleguiado. Como o país não aderia a normas internacionais de controle desse tipo de armamento, o governo americano decidiu impor sanções para a venda de materiais brasileiros.
Já nos estertores do governo FHC, em 2002, o Brasil foi à Organização Mundial do Comércio (OMC) contra subsídios americanos indevidos a produtores locais de algodão. A OMC deu ganhos de causa ao Brasil durante os governos Lula 1 e 2.
No governo Dilma Rousseff (2011-2016), a revelação pelo site WikiLeaks, em 2015, de documentos sigilosos americanos propiciaram um novo desgaste na relação: a petista e 29 pessoas ligadas à gestão tinham sido monitoradas pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês).
Correntes diplomáticas
Da Proclamação da República até o governo Jânio Quadros (1961), conta Ricupero, o padrão brasileiro era de manter alinhamento automático com os EUA.
— Quem mudou isso foi o Jânio, com a chamada Política Externa Independente. Ele foi o primeiro a entender que o Brasil deveria olhar o mundo não pelo prisma da Guerra Fria, mas pelos seus próprios interesses — explica.
Outro contexto marcante foi o do próprio governo Geisel, quando Azeredo da Silveira capitaneou o “pragmatismo responsável e ecumênico” e mudou de vez a dinâmica dos militares com os americanos, anos depois da parceria no golpe de 1964.

