Como a inelegibilidade de Le Pen bagunça ainda mais o cenário político interno da França
Líder do Reagrupamento Nacional era favorita para a eleição de 2027, aproveitando a fragilidade de Macron e a fissura na esquerda, mas os cálculos mudaram radicalmente
Nos instantes que antecederam uma das mais bombásticas sentenças na história recente da política francesa, a líder do Reagrupamento Nacional e considerada o rosto da extrema direita no país, Marine Le Pen balançou a cabeça e fez um breve comentário a seu advogado em um tribunal de Paris.
— Inacreditável.
Ela deixou a sala antes do painel de juízes decretá-la culpada pelo desvio de verbas públicas da União Europeia — um bloco do qual defendeu a saída francesa no passado — e condená-la a quatro anos de prisão, cumpridos com tornozeleira eletrônica, uma multa de € 100 mil (R$ 624 mil) e, no golpe mais duro, cinco anos de inelegibilidade. Seus advogados prometeram entrar com recurso para permitir que concorra à Presidência em 2027. A inelegibilidade será aplicada de maneira imediata, enquanto as penas de prisão e a multa dependem de uma condenação definitiva. Ela não perderá seu mandato de deputada.
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— Esta noite, há milhões de franceses indignados, indignados num grau inimaginável, ao ver que na França, no país dos direitos humanos, juízes implementaram práticas que pensávamos serem reservadas a regimes autoritários — disse Le Pen, em entrevista à rede TF1. — Esse é um dia trágico para a nossa democracia e para o nosso país, onde milhões de franceses serão privados por um juiz de primeira instância, sem qualquer recurso possível, do candidato que hoje é dado como favorito nas eleições presidenciais.
O caso envolvendo a líder do principal partido de extrema direita francês trata de um esquema de uso indevido de fundos da União Europeia, destinados ao pagamento de assessores de eurodeputados, mas que estariam sendo usados para custear os salários de funcionários que trabalhavam em questões internas da política francesa. O esquema foi mantido entre 2004 e 2016.
Além dela, doze assistentes também foram condenados por ocultação de crime, com o tribunal estimando que o esquema desviou € 2,9 milhões (R$ 18,1 milhões). Segundo os juízes, a sentença deve ser cumprida de maneira imediata, mesmo que sejam apresentados recursos, como Le Pen disse que fará.
Caso a inelegibilidade seja confirmada, será a primeira disputa pelo Palácio do Eliseu desde 1981 sem o clã Le Pen nas cédulas — seu pai e fundador do partido (na época chamado de Frente Nacional), Jean-Marie Le Pen, concorreu várias vezes — , e será mais um impacto sobre o já conturbado cenário político francês, a cerca de dois anos da eleição.
As incertezas começam pelo atual presidente, Emmanuel Macron. Ele não pode se candidatar a um terceiro mandato, e mesmo que pudesse não está claro se conseguiria se reeleger mais uma vez. Sua popularidade hoje gira em torno de 30%, um número até positivo se comparado com os 20% ao longo de 2024, um ano que ele prefere esquecer.
A decisão de antecipar as eleições legislativas após a vitória da extrema direita na votação para o Parlamento Europeu, no ano passado, ressaltou a fragilidade de seu campo político: sua coalizão, o Juntos, perdeu 86 cadeiras, enquanto a esquerda do A França Insubmissa e a extrema direita do Reagrupamento Nacional tiveram votações históricas. Na ocasião, Le Pen chegou a sugerir que Macron avaliasse renunciar, algo que ele se recusa a fazer.
Sem maioria, foram longas negociações até que Macron apresentasse o nome do veterano Michel Barnier para o posto de primeiro-ministro. Barnier ficou menos de 100 dias no posto, até ser derrubado por um voto de não confiança. Em seu lugar foi indicado François Bayrou, outro veterano. Ele segue no cargo, mas as dificuldades para governar são muitas e convivem com as constantes ameaças de um voto de não confiança. Até agora, não há um nome de consenso para a chapa governista, e as apostas incluem os ex-primeiros-ministros Gabriel Attal e Édouard Philippe.
Com os governistas em desarranjo, os demais campos políticos enxergavam a possibilidade de chegar, ou retornar, ao poder. A começar pela esquerda, que nas eleições legislativas do ano passado foi grande surpresa sob liderança do A França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, provável candidato daqui a dois anos.
Em 2022, por pouco ele não disputou o segundo turno com Macron, mas analistas são céticos sobre suas reais chances contra a direita ou a centro-direita. Ao comentar a decisão contra Le Pen, ele disse que a decisão de remover um político eleito "deve ser do povo", e que seu partido "nunca cogitou a opção de usar um tribunal para se livrar do Reagrupamento Nacional"
As posições contundentes, seja sobre políticas públicas francesas, direitos de minorias ou sobre a guerra em Gaza, quando chegou a ser acusado de antissemitismo, não são bem vistas por boa parte da sociedade, servem como munição para a extrema direita e fazem com que a muitos na esquerda moderada se afastem dele.
Em fevereiro, ele anunciou o rompimento da aliança com o Partido Socialista, que fez parte da coalizão vencedora das eleições legislativas, a Nova Frente Popular. Em comunicado, afirmou que ali “virava a página de uma relação tóxica”, e que os socialistas preferiram se alinhar aos governistas do que serem uma oposição ativa — um exemplo citado com frequência foi a recusa de parte dos agora ex-aliados em apoiar uma moção de não confiança contra Bayrou, além de votos favoráveis a Macron.
— Há uma oposição à França Insubmissa dentro do Partido Socialista que é muito forte — disse ao site The Nation Rémi Lefebvre, professor de Ciências Políticas na Universidade de Lille. — Uma parte do partido é moderada em questões econômicas e acha que a plataforma da França Insubmissa é muito esquerdista.
As disputas na esquerda e o derrotismo dos governistas contrastavam com o otimismo da extrema direita. Uma pesquisa do instituto Ifop, em parceria com o Journal du Dimanche, divulgada no sábado, mostra Le Pen com até 37% das intenções de voto nos cenários, bem à frente do ex-premier Édouard Philippe (26%) e de Mélenchon, que não atinge os 15%.
A líder do Reagrupamento Nacional é uma veterana da política, disputando todas as eleições presidenciais desde 2012, e que repaginou a principal sigla de extrema direita do país. Apesar de soarem mais brandas, as principais pautas do campo político seguem à vista, como o combate à imigração, as críticas a Bruxelas, e o discurso da “ameaça do Islã radical”.
Mas a condenação jogou a campanha em terreno desconhecido. Ainda há opções legais para reverter a decisão, e que podem sair antes da eleição de 2027. Le Pen garante que não planeja deixar a vida pública enquanto os tribunais analisam seu recurso, mas seus atos poderão se ver limitados pela tornozeleira eletrônica.
Em declarações à rede TF1, afirmou que o tribunal “obedece a uma instrução, a uma ordem, a um clima” político, e que "o Estado de Direito foi completamente violado pela decisão proferida". Frédéric Falcon, deputado do Reagrupamento Nacional, chamou a condenação de “golpe de Estado institucional”. Políticos de extrema direita do continente saíram em apoio de Le Pen, assim como o governo de Vladimir Putin na Rússia e o Departamento de Estado dos EUA, que considerou a decisão "particularmente preocupante".
— Eles a proibiram de concorrer por cinco anos, e ela era a candidata líder. Isso soa como este país, soa muito como este país — afirmou o presidente Donald Trump na Casa Branca. —É uma questão muito importante.
Sem um sinal positivo dos tribunais, o partido se vê cada vez mais perto do “Plano B”: centrar as forças em Jordan Bardella, o eurodeputado de 29 anos considerado a estrela em ascensão na extrema direita. No domingo, Le Pen disse em um documentário exibido pela BFMTV que ele “estava apto” a ser candidato ao Palácio do Eliseu. A legislação francesa estabelece que a idade mínima para se candidatar ao cargo é de 18 anos — no Brasil, o limite é de 35 anos.
Bardella chegou a ser ventilado como um possível premier antes das eleições do ano passado, e é popular entre os mais jovens, uma parcela da população tradicionalmente dominada pela esquerda. Contudo, sua inexperiência é questionada entre seus colegas, e o impacto de uma condenação por corrupção em uma sigla que no passado se orgulhava de “ter as mãos limpas e a cabeça erguida” pode abalar os planos presidenciais.

