Dia do Frevo: Tradição e renovação como forma de resistência
Movimento transgressor, o frevo nasceu nas ruas do Recife em uma época de tensões históricas. O ritmo secular passou por diversas transformações e mostrou que vai além das ladeiras do Carnaval
Ritmo. Expressão. Liberdade. O frevo tem, desde o seu nome, o contexto de força que vem do quente, da fervura. Falar sobre o frevo é sempre uma oportunidade de descobrir que ele não se trata apenas de um chamado para o Carnaval. O Patrimônio Imaterial da Humanidade, reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2012, continua sendo símbolo de resistência que, para existir, também busca se reformular através das gerações.
Nascido nas ruas do centro do Recife, em um País que havia findado a escravidão há pouco, o frevo nunca foi só música ou dança. Ele é uma expressão cultural libertária dentro de um recorte histórico significativo. E esse nascimento foi datado pela primeira vez no Jornal Pequeno, que circulava na Capital, na edição do dia 9 de fevereiro de 1907. Foi quando a palavra frevo apareceu escrita oficialmente pela primeira vez - por isso, o Dia Frevo, em Pernambuco, é celebrado nesta data. “O frevo de rua sempre teve a questão da modernidade e contemporaneidade inseridas em seu contexto. Movimento transgressor, se colocava como um questionador social, político e econômico, e isso o acompanha desde a sua origem.”, explica o músico e produtor André Freitas.
Se o frevo hoje é a escolha principal e perfeita para celebrar os dias de Momo, com ritmo frenético e acelerado, no passado ele também foi a trilha sonora da transformação que a Cidade do Recife passou na virada do século 19. O que, para muitos, ainda pode ser utilizado como instrumento para contextualizar nosso cenário atual. “O que estava fervendo naquela época não era a música, mas a sociedade. As pessoas diziam: Ah, não vai ali porque está tendo um fervo”, afirma Freitas. Hoje, não há dúvidas da importância da representatividade do ritmo no Estado. Tido como uma das poucas expressões culturais que nasce do centro e vai para a periferia, enquanto outros fazem o caminho inverso, o frevo apesar de popular ainda luta pela disseminação de seu espaço, como arte, música e economia.
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“Quando falamos de crítica social, por exemplo, ela está muito mais presente na música carnavalesca, não especificamente no frevo, mas ele traz em si uma festa de resistência da luta das pessoas. Costumo dizer que é no Carnaval que tiramos as máscaras e gritamos por liberdade, pelas relações machistas que não queremos, por exemplo. É na hora da brincadeira que levamos nosso protesto”, afirma a historiadora Carmem Lelis. Tudo isso é exemplificado por ela na icônica composição de Capiba, “Madeira que Cupim não Rói”, eternizada como o hino do Carnaval pernambucano. “Ela vem não necessariamente como uma crítica, mas sobre quando queremos nos mostrar fortes. ‘Nós somos madeira de lei que cupim não rói’”, finaliza.
De um lado, defende-se a manutenção da tradição, do outro, fala-se da necessidade de reinventá-lo. Mas, é a identificação que as pessoas têm com o frevo que o faz ultrapassar as ladeiras do Carnaval. “Ele surgiu como uma luta de classes, com as agremiações como Abanadores, Vassourinhas, Lenhadores. Hoje, essa questão de classes não é tão forte, mas o frevo, agora, busca o desbravar da dança popular, que fala de onde viemos e para onde queremos ir”, comenta a diretora da Cia Perna de Palco, Anna Miranda. Se à primeira vista passos como dobradiça, tesoura, locomotiva e parafuso parecem complexos, segundo Anna, já há uma renovação grande na dança. “Se compararmos os passistas de antes com os de agora, vemos outros movimentos, mas sem perder a essência e a história que está dentro de todo esse processo”.
Para Jorge Luiz Viegas Júnior, professor de dança do Paço do Frevo e da Escola de Frevo do Recife Maestro Fernando Borges, a resistência secular que existe no frevo é caracterizada pelo fato de ter surgido nas ruas, abrindo alas para todos “passarem” sem distinção. É a embriaguez do frevo, que entra na cabeça depois toma o corpo e acaba no pé, já dizia Capiba. “Costumo dizer que no frevo cada um tem sua digital, ninguém dança igual a ninguém. Todos podem dançar da forma que quiserem, porque o frevo tem a sua liberdade de expressão. Eu me liberto, vou para as ruas e coloco minha vivência na dança”, afirma o professor, desmistificando que, para dançar, é necessário ser uma espécie de acrobata. Ele, inclusive, está promovendo o espetáculo chamado "Entre passos e sombrinhas" e "Entre Ruas", para o teatro, por meio do Estúdio Viegas de Dança. "O mundo se abriu para o frevo e quero que isso cresça, o frevo precisa ocupar palcos e festivais", enfatiza.
Assim como o trabalho do educador Júnior Viegas tem como foco disseminar o frevo enquanto dança e expressão corporal artística para o mundo, na música essa universalização também é fortemente defendida por uma nova geração de compositores e instrumentistas. Filho do grande compositor J.Michiles - autor de clássicos como “Bom Demais”, “Diabo Louro”, “Me segura, senão eu caio” -, homenageado no Carnaval do Recife, no ano passado, o músico César Michiles pontua bem a diferença entre frevo enquanto passo e linguagem musical. “Achamos que o frevo é só a trilha do Carnaval que vai tocar ali e acabou. Mas ele pode atingir outros patamares e dimensões. Um frevo mais elaborado, com outra instrumentação e cores, é isso que faz a renovação musical. É pensar em uma nova concepção de frevo como música instrumental brasileira”, declara. Michiles, que é flautista e diretor da Transversal Frevo Orquestra, irá se apresentar neste sábado, as 16h30, no Paço do Frevo. Ele também assina a direção musical do Carnaval do Recife, que contará com uma mistura entre brega e frevo.
Criado através da influência do maxixe, capoeira, marcha, dobrado, polca e quadrilha, o frevo nunca esteve em crise no que diz respeito à criatividade. O problema está em como chegar ao consumidor final. “Viemos de Capiba, Carlos Fernando, com o frevo mais modernizado, Jota Michiles com algo mais rasgado, e depois há uma lacuna. Muitos artistas não têm a oportunidade de mostrar seu trabalho”, afirma o diretor. Ano passado, a Prefeitura do Recife retomou o Festival Nacional do Frevo, que contou com 274 inscrições. A final consagrou como primeiros colocados os frevos No Primeiro Dia do Nosso Amor, de Lourenço Gato e Flávio Souza (com arranjo de Fábio Valois), na categoria Frevo de Bloco; Alvoroçado, de Bené Sena, na categoria Frevo de Rua; Claudionor, o Menino do Frevo, de Bráulio de Castro e João Araújo (com arranjo de Fábio Valois e interpretação de Ed Carlos), na categoria Frevo Canção; e Primeiro de Maio, de Romero Bomfim (com arranjo de Parrô Melo), na categoria Frevo Livre Instrumental - Autoral.
Recortes sociais
O ritmo rasgado e acelerado, com passos marcantes, é a principal característica do frevo de rua. Mas, o movimento precisou se adequar a outras camadas sociais, em meados da década de 1930, quando surge o frevo de bloco, para o Carnaval “em família”. “É o frevo mais suave, que veio em um momento cuja a tensão social é menor. Nas agremiações não têm apenas a figura masculina, mas das famílias, a participação mais efetiva da mulher”, explica a historiadora Carmem Lelis. Enquanto predomina nas ruas, nas orquestras de metais, é nos clubes e blocos que o ritmo passa a ser composto por pau e corda. O saudosismo e melancolia do frevo de bloco foram traduzidos por compositores como Nelson Ferreira, de "Evocação nº 1", "Valores do Passado" de Edgar Moraes e "Relembrando o Passado" de João Santiago. E a crítica social e cultura, dentro dessa expressão é mais implícita. “Nas letras dos frevos também há uma resistência, se você for observar sempre tem um certo sentimento de coisas que se perderam com o tempo, precisamos criar algo novo, mas sem deixar de lado a tradição”, afirma o compositor, arranjador e instrumentista Henrique Albino.
A composição de Getúlio Cavalcanti, “Último Regresso”, segundo Albino, já retratava na época o fenômeno dos blocos líricos que estão terminando. “Falam tanto que meu bloco está dando adeus para nunca mais sair..Eles não conseguem mais sustentar sua existência, porque os jovens não estão praticando o frevo lírico, só o de rua e o canção”, ressalta. Por isso, a importância de trabalhar com esse movimento tão importante para Pernambuco. “Mesmo que ele seja misturado, só os pernambucanos têm o frevo”, completa Albino.
No frevo-canção é a brincadeira e a lucidade que marcam as grandes composições, como as de Alceu Valença e Almir Rouche. E é nesse tipo de frevo que o movimento de transformação e de novas facetas desse gênero musical está mais a frente. "É a resistência que precisa estar sempre presente ao se fazer cultura", afirma a gerente geral do Paço do Frevo, Nicole Costa. Ela também pontua que é nesse caminho em que a mulher começar a ter espaço dentro do frevo. "A mulher sempre esteve presente na construção histórica do frevo, mas não como destaque. Hoje temos grandes mulheres que levam o frevo para o mundo, como Nena Queira, a compositora e instrumentista Maria Flor, uma grande referência", declara. Ela menciona a compositora do grande sucesso "Vassourinhas", Joana Batista, e que há um projeto para resgatar sua importância na composição desta música. Ainda assim, a presença da mulher no movimento ainda precisa ser reforçada - seja na dança, na música, na rua.
Museu do Frevo
No Dia do Frevo, também são celebrados os cinco anos da inauguração do Paço do Frevo, centro cultural responsável por difundir e fomentar o ritmo pernambucano. Reduto de pesquisa e formação, o Paço também funciona como um ambiente de convivência e reflexão, renovação e experimentação, oferecendo um painel aberto e contemporâneo. Nesses cinco anos de existência, o espaço recebeu mais de 520 mil visitantes. Só em 2017, foram 120 mil visitantes.
De acordo com o diretor presidente do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), Ricardo Piquet, a existência do equipamento tem feito o recifense conhecer a sua riqueza cultural. “É preciso frequentar e dar importância pública a esses espaços. Esse é um engajamento que tem surgido nos últimos anos. Temos um belíssimo espaço e com um volume de atividades muito grande. Iniciamos uma troca com as comunidades e agremiações e estamos iniciando com outras manifestações também. O frevo com jazz, com rock, com fado”, afirma.
O grande problema é a falta de patrocínio para dar corpo a estes projetos. “É preciso questionar a iniciativa privada sobre o porquê de não apoiar um equipamento cultural desses nas cidade.” A defesa do frevo como manifestação cultural dentro de um conjunto de ativos - na dança, na música, na indumentária, nos instrumentos - é parte da identidade do Recife. E o Paço do Frevo veio para tornar isso mais forte. “O frevo estará preservado quando estiver conhecido, promovido e consumido. Ele precisa ser visto como parte da identidade, não do Carnaval, mas da Cidade e o ano inteiro”, defende Piquet.
Durante esses cinco anos, o Paço do Frevo realizou mais de 450 atrações culturais e 141 Horas do Frevo, projeto que entre 2016/2017 foi contemplado com o Prêmio Funarte de Programação Continuada para a Música Popular. Aconteceram, ainda, 42 Arrastões do Frevo, 104 Sábados no Paço e 14 Rodas de Frevo, ação realizada em parceria com a Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer de Pernambuco, apresentando os ensaios de uma orquestra com aproximadamente 80 músicos sob os comandos do Maestro Spok.
Para celebrar não só o aniversário do museu, mas o Dia do Frevo, a programação comemorativa começará a partir das 16h, neste sábado, com apresentações artísticas de professores e alunos do museu, compostas por canto coral, frevo improviso e vivências. Além das apresentações, às 16h30, nossa Praça do Frevo recebe o show especial da Transversal Frevo Orquestra, apresentando a flauta como protagonista do concerto. Durante todo o dia, o acesso ao museu será gratuito.

