"Drama dos imigrantes será pauta número um de próximo Papa", diz secretário-geral da CNBB
Ao Globo, Dom Ricardo Hoepers, bispo auxiliar de Brasília diz que Igreja não tem como se distanciar das preocupações com os mais vulneráveis que marcou o papado de Francisco
A crise migratória, tema que divide o mundo e impulsiona o crescimento da extrema direita, deve ser a “pauta número um” do próximo Papa. É o que afirma o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Ricardo Hoepers.
Às vésperas do conclave, o bispo auxiliar de Brasília diz que a Igreja não tem como se distanciar da preocupação com os mais vulneráveis que marcou o pontificado de Francisco. “Ele nunca se deixou levar pelas críticas. É isso que a Igreja precisa fazer”, defende.
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O Papa Francisco costumava ser descrito como progressista. A Igreja vai escolher um cardeal parecido com ele ou pode voltar a eleger um Papa conservador?
É difícil limitar os cardeais a essas duas visões. A Igreja, em mais de dois mil anos de História, tem tudo dentro dela. Cada Papa precisa saber quando é necessário avançar e quando é necessário conservar. Cada um faz isso a seu modo, de acordo com seu temperamento e com sua história pessoal. Este conclave terá cardeais das regiões mais longínquas. Isso é um avanço importante. A diversidade dos carismas vai ampliar a responsabilidade do próximo Papa, que precisará responder a demandas de um mundo globalizado.
Francisco teve posição avançada em questões que dividem o mundo e impulsionam o crescimento da extrema direita, como a crise migratória. Pode haver uma guinada nesse tema?
Nisso a Igreja não tem como voltar atrás. A imigração é um drama humano. Onde os dramas humanos gritam, a Igreja tem que estar presente. Em 2013, Francisco foi a Lampedusa (ilha italiana do Mediterrâneo que mais recebe refugiados) e falou em globalização da indiferença. Há um sentimento de indiferença em relação aos imigrantes. Como se eles não existissem, como se não fossem importantes. A questão dos imigrantes será a pauta número um do próximo Papa. A Igreja repudia e sempre vai repudiar todo tipo de discriminação e de exclusão.
No funeral de Francisco, o cardeal decano, Giovanni Battista Re, repetiu sua frase de que é preciso construir pontes e não erguer muros. Foi um recado para Donald Trump, que assistia à missa no Vaticano?
Para bom entendedor, meia palavra basta. O Trump estava na primeira fila. Por isso é tão importante o papel da Igreja. O aspecto essencial da Igreja é a fé, é Jesus Cristo. Mas o Evangelho é a consciência de que Deus se fez carne e veio para a Humanidade. Então todos os dramas da Humanidade são dramas da igreja. Todos os sofrimentos são sofrimentos da Igreja. Ela não tem como se desligar das questões humanitárias.
Críticos de Francisco diziam que a Igreja estava se politizando demais. O senhor concorda?
O cuidado com o outro sempre fará parte da Igreja. Com o outro que é negro, indígena, imigrante. Às vezes, a Igreja não é muito bem compreendida. Não se trata de entrar em questões políticas, se trata de ter compromisso e solidariedade com quem está sofrendo. Não podemos nos omitir. Os excluídos, os rejeitados e os imigrantes estão na pauta da Igreja, porque somos nós que os acolhemos na base da sociedade.
O Papa enfrentou oposição forte de alas mais conservadoras da Igreja. Esses grupos podem voltar ao poder após o conclave?
Acho muito difícil. São grupos que têm força, sem dúvida. Mas eles não resistiram apenas ao Papa Francisco. Resistem ao Concílio Vaticano II. Não aceitam o fato de que a Igreja se abriu ao mundo. Têm a visão de uma Igreja puritana, acima das realidades humanas. A doutrina social da Igreja é riquíssima. Não se trata de partidarismo nem de ideologia, mas de ter consciência do nosso papel. Não estamos no mundo para dizer ao povo que é preciso prosperar e ganhar dinheiro. Estamos aqui para dizer que precisamos ser solidários e cuidar um dos outros. Para dizer que tem que pessoas que sofrem, que existem injustiças. Isso é, para nós, o essencial do Evangelho.
Como fazer isso na prática?
Temos que fazer a crítica ao sistema, aos partidos, às estruturas de corrupção e de pecado que existem no mundo. A Igreja não tem como não debater os temas sociais. Quem não deseja isso não percebe que está envolvido numa rede ideológica. O próprio Papa Francisco disse isso. Se você ajuda os pobres, você é comunista? Se você ajuda os imigrantes, você é comunista? Há um erro grave de compreensão.
De que forma Francisco lidou com essas críticas?
A atitude do Papa foi: enquanto os cães ladram, a caravana passa. Enquanto esse pessoal o chamava de comunista, ele continuava visitando os imigrantes, abraçando os doentes, acolhendo os moradores de rua, fazendo o Dia Mundial dos Pobres. Ele nunca se deixou levar pelas críticas. É isso que a Igreja precisa fazer. Não devemos esperar aplausos nem reconhecimento. Temos que viver o Evangelho, mesmo que sejamos rotulados. Temos que ser fiéis ao que Cristo disse: “Amai-vos uns aos outros.” As pessoas estão sendo esquecidas, abandonadas. Ao resgatar esse cuidado, o Papa Francisco voltou à essência do cristianismo.
Há cardeais que defendem que o próximo Papa volte a permitir missas em latim, com o padre de costas para os fiéis. Como vê essa ideia?
A Igreja se abriu para a língua vernácula para viver mais perto das pessoas. Esse povo ultratradicionalista diz que nós só temos que cuidar das almas. É um erro interpretativo completo. O próprio Deus se fez homem, assumiu a nossa natureza. Então tudo o que se refere à nossa natureza tem que ser cuidado pela Igreja.

