EUA investiga sistema de transplantes após casos de doadores com sinais de consciência
Casos são raros, mas revelam erros de médicos e instituições em meio ao objetivo de aumentar o número de órgãos disponíveis no país
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (HHS, da sigla em inglês), equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil, anunciou nesta terça-feira que dará início a uma reforma no sistema de transplantes de órgãos do país após uma investigação da Administração de Recursos e Serviços de Saúde (HRSA) identificar casos em que doadores tinham algum sinal de consciência.
— Nossas conclusões mostram que hospitais permitiram o início do processo de captação de órgãos enquanto os pacientes ainda apresentavam sinais de vida, e isso é horrível. As organizações de procura de órgãos que coordenam o acesso aos transplantes serão responsabilizadas — disse o secretário do HHS, Robert F. Kennedy, Jr.
A investigação da HRSA examinou 351 casos em que a doação de órgãos foi autorizada, mas não chegou a ser realizada e apontou que 103 (29,3%) apresentaram “elementos preocupantes”, incluindo 73 pacientes com “sinais neurológicos incompatíveis com a doação de órgãos”, explica a autoridade em nota.
Em entrevistas com profissionais de saúde, além da revisão de registros internos, gravações de áudio e mensagens de texto, o jornal americano The New York Times confirmou 12 casos em nove estados que inquietaram os profissionais ou estavam sendo investigados.
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Os casos são raros: os EUA realizaram 48 mil transplantes no ano passado. Mas revelam erros de médicos e instituições em meio ao objetivo de aumentar o número de órgãos disponíveis no país.
Nos EUA, um sistema complexo que envolve hospitais, médicos e coordenadores de doações sem fins lucrativos realiza dezenas de milhares de transplantes que salvam vidas todos os anos. Em cada etapa, o sistema depende de protocolos cuidadosamente calibrados para proteger tanto os doadores quanto os receptores.
Mas nos últimos anos, à medida que o sistema tem se esforçado para aumentar o número de transplantes, um número crescente de pacientes tem passado por tentativas prematuras ou mal conduzidas de retirada de órgãos. A investigação do NYT revelou um padrão de decisões apressadas, que priorizam a necessidade de mais órgãos em detrimento da segurança dos possíveis doadores.
Na primavera passada, em um pequeno hospital do Alabama, uma equipe de cirurgiões de transplante se preparava para abrir o corpo de Misty Hawkins, de 42 anos. Dias antes, ela engasgou durante uma refeição e entrou em coma. Sua mãe decidiu desligá-la do suporte de vida e doar seus órgãos. Ela foi retirada do ventilador e, após 103 minutos, declarada morta. No entanto, ao darem início à cirurgia, os médicos descobriram que seu coração ainda batia e ela parecia estar respirando.
No Novo México, uma mulher passou dias em preparação para a doação, mesmo depois de sua família afirmar que ela parecia estar recobrando a consciência, o que de fato aconteceu depois. Na Flórida, um homem chorava, mas ainda assim foi retirado do suporte de vida. Na Virgínia Ocidental, médicos ficaram chocados quando os coordenadores pediram a um homem paralisado, que estava saindo dos sedativos na sala de cirurgia, que consentisse com a doação de seus órgãos.
Histórias como essas surgiram à medida que o sistema de transplantes tem recorrido cada vez mais a um tipo de remoção de órgãos chamado doação após parada circulatória. Esse tipo de doação representou um terço de todas as doações no ano passado nos EUA: cerca de 20 mil órgãos, três vezes mais que há cinco anos.
A maioria dos órgãos doados nos Estados Unidos vem de pessoas com morte cerebral, um estado irreversível, que são mantidas em aparelhos apenas para preservar os órgãos. A doação após parada circulatória é diferente. Esses pacientes estão em suporte de vida, muitas vezes em coma. Seus prognósticos dependem mais de julgamentos médicos.
Eles estão vivos, com alguma atividade cerebral, mas os médicos determinaram que estão próximos da morte e não irão se recuperar. Se os parentes concordam com a doação, os médicos retiram o suporte de vida e esperam o coração parar. Isso precisa acontecer dentro de uma ou duas horas para que os órgãos sejam considerados viáveis. Após a declaração de morte, os cirurgiões entram.
No Brasil, é incomum a doação após morte circulatória, com exceção de um pequeno número de transplantes renais. Em um artigo publicado no Jornal Brasileiro de Pneumologia, em 2022, pesquisadores explicam que as taxas de morte encefálica continuam altas no Brasil, diferente do cenário em países de renda alta, como EUA, e não parecem estar diminuindo.
No país norte-americano, a investigação do NYT descobriu que algumas organizações de obtenção de órgãos – entidades sem fins lucrativos com contratos federais em cada estado para coordenar os transplantes – estão perseguindo agressivamente doadores após parada circulatória e pressionando famílias e médicos em direção à cirurgia. Os hospitais são responsáveis pelos pacientes até o momento da morte, mas alguns têm permitido que essas organizações influenciem decisões de tratamento.
Ao todo, 55 profissionais de saúde em 19 estados disseram ao NYT que testemunharam pelo menos um caso perturbador de doação após parada circulatória. Profissionais de vários estados disseram ter visto coordenadores persuadindo clínicos hospitalares a administrar morfina, propofol e outros medicamentos para acelerar a morte de potenciais doadores.
— Acho que esse tipo de problema acontece muito mais do que sabemos — afirma Wade Smith, neurologista da Universidade da Califórnia, em San Francisco, que frequentemente avalia possíveis doadores e estuda a doação após parada circulatória.
A maioria desses pacientes morreu, portanto é impossível saber o que eles vivenciaram. Médicos expressaram preocupação de que alguns poderiam ter se recuperado se tivessem tido mais tempo em suporte de vida. Outros podem ter sentido dor ou sofrimento emocional nas últimas horas de vida.
As dúvidas tornaram-se mais urgentes à medida que esse tipo de doação cresceu rapidamente nos últimos cinco anos, impulsionado em parte por pressões federais sobre as organizações de obtenção para aumentar os transplantes. Ao mesmo tempo, o governo tem, em grande parte, permitido que o sistema de transplantes se autorregule.
Em entrevistas, líderes do sistema defenderam que a doação após parada circulatória é segura e crucial para salvar milhares de vidas todos os anos. A Associação das Organizações de Procura de Órgãos, grupo do setor, afirmou em comunicado que os potenciais doadores recebem o mesmo padrão de cuidado que qualquer outro paciente até que sejam declarados mortos.
As decisões sobre tratamento e declaração de morte “são de responsabilidade exclusiva da equipe hospitalar”, afirmou. E disse que focar em um pequeno número de casos com desfechos ruins é um erro. “Essas histórias pintam um retrato assustador, impreciso e desequilibrado do nosso sistema”, continuou.
Robert Cannon, cirurgião de transplante da Universidade do Alabama diz acreditar que o sistema hesita em enfrentar falhas de segurança na doação após parada circulatória, com medo de que as pessoas deixem de doar:
— Não sei qual é a dimensão do problema. Não sei se alguém sabe. Isso é o mais assustador.

