França celebra Dia da Bastilha; entenda relação de data com protestos recentes
Para Richard Derderian, autor de livro sobre comunidade de norte-africanos na França, repetidos ciclos de violência tem origem na não integração completa de imigrantes na identidade nacional
A França celebra nesta sexta-feira o Dia da Bastilha – feriado que marca a tomada em 1789 da prisão homônima durante a Revolução Francesa – com um excepcional esquema de segurança dez dias depois de quase uma semana de protestos pela morte por um disparo policial à queima-roupa de Nahel Merzouk, jovem de 17 anos de ascendência argelina, durante uma blitz de trânsito em 27 de junho.
Desde quinta-feira, 130 mil policiais e agentes de segurança serão mobilizados em todo o país, incluindo 45 mil em cada noite, devido a um "particular ambiente de violência", anunciou na quarta-feira o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin. De acordo com o jornal Le Monde, apesar da proibição de venda e posse de fogos de artifício, usados contra as forças policiais durante as manifestações, as vendas no mercado negro foram altas. Segundo dados do Ministério do Interior, 150 mil fogos de artifício obtidos de forma ilegal foram apreendidos desde 27 de junho.
A explosão de violência deixou em destaque as constantes tensões sociais e raciais nas periferias das grandes cidades francesas e o recorrente debate sobre a violência policial no país.
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Mas, mais do que isso, deixou clara a dificuldade de a França encarar as origens históricas de ressentimentos que nasceram com o Império Colonial Francês e a não integração completa de imigrantes na identidade nacional do país, segundo o americano Richard Derderian, autor de "North Africans in Contemporary France: Becoming Visible" (Norte-Africanos na França Contemporânea: Tornando-se Visíveis", sem publicação no Brasil).
Em entrevista ao Globo, o anfitrião do podcast Realms of Memory (Reinos da Memória, em tradução livre) – cujos episódios abordam como os países tratam do próprio passado – discorre sobre como a ideia de identidade nacional formada sob a Revolução Francesa impacta os repetidos ciclos de violência na França, assim como reverberou na recente decisão da Suprema Corte dos EUA (composta por 6 juízes conservadores e três progressistas) de pôr fim à ação afirmativa nas universidades.
Como a Revolução Francesa formou a atual identidade nacional do país?
Na Revolução Francesa, tudo se referiu a descartar espécies de castas ou uma sociedade dividida, na qual o nascimento determinava seus direitos e privilégios. Ela foi basicamente a revolta da maioria da população, denominada de Terceiro Estado, contra o Primeiro Estado, a nobreza somada ao clero. Assim, referia-se a tentar apagar direitos específicos e diferenças, algo que é parte central da herança cultural dos franceses e relaciona-se ao Iluminismo, de que a rota para igualdade não é pela preservação de identidades e direitos particulares. Daí advém uma cultura calcada na colour blindness, a ideia de que, para haver igualdade, é necessário ser cego para as diferenças de cor, raça e etnia. Eles sempre se orgulharam muito disso. Por muito tempo, em relação aos EUA, os franceses falavam em modèle américain, uma expressão muito negativa que evoca um país com guetos, distúrbios raciais e maldade pelo histórico de priorizar grupos identitários. Embora a França não tenha os problemas de escala dos EUA, há questão visíveis, e claramente não é uma sociedade "cega para as cores". Enquanto nos EUA há o Censo, em que é necessário assinalar categorias como raça, na França não se permite fazer esse tipo de pergunta sobre a origem. Mas há muita hipocrisia. Eles fingem que não prestam atenção nisso, mas muitas decisões são tomadas com base em raça ou definem, por exemplo, que uma escola pode ter uma cruz, mas não permitir o uso do véu [islâmico]. Isso também está documentado na literatura de Ciências Sociais, que mostra que a raça importa sim na tomada de decisão das autoridades na França no que se refere a educação, emprego, habitação pública.
Recentemente, em uma rede social, o senhor associou a ideia de colour blindness francesa e a recente decisão da Suprema Corte dos EUA de pôr fim à ação afirmativa. Qual seria o paralelo?
A decisão da Corte de se distanciar da ação afirmativa sob o argumento de que seria necessário centrar-se mais em uma sociedade que não vê raça, baseada em direitos iguais, pareceu-me mais próximo de como os franceses pensam ao lidar com grupos minoritários. Ou ao menos a maioria conservadora da Corte americana me pareceu mais próxima ao modelo ou entendimento francês de como abordar a inclusão de grupos diferentes. Mesmo termos como inclusão, integração, assimilação são altamente politizados. Há toda uma língua de terminalogias que se usa para se referir à inclusão de pessoas à sociedade. Nos EUA, se você está à direita, fala imigrantes ilegais. Se está à esquerda, imigrantes sem documentos [em situação irregular]. Eu assisto à TV francesa regularmente, e eles se referem à ação afirmativa como "discriminação positiva" – uma acepção negativa. Apesar de os franceses falarem também sobre formas de incluir novos cidadãos, sua terminologia geralmente é menos favorável a uma ideia multicultural de se tornar parte da sociedade, onde de alguma forma seja possível absorver as diferenças.
As críticas à ação afirmativa têm a mesma origem nos EUA e na França?
A reação à ação afirmativa nos EUA é conservadora, enquanto na França é uma tradição da esquerda, abraçando o legado e a cultura da revolução. Então, vem de dois lugares muito diferentes. Se a ideia original da ação afirmativa nos EUA era tentar consertar os erros das injustiças históricas em relação aos afroamericanos, mais tarde se tornou mais sobre a importância da diversidade. Para a maioria conservadora na Suprema Corte americana, contudo, a medida acabou sendo usada como se só houvesse um tipo de comunidade afroamericana, uma única categoria, criando um tipo de discriminação reversa que desprivilegia outros grupos. Há alguma verdade nessa ideia, já que o processo levado à Suprema Corte realmente mostrou que estudantes asiáticos-americanos ficaram em desvantagem perante outros grupos. Também é verdade que há falhas na ação afirmativa. Ao observar as universidades de elite que a aplicam, frequentemente as minorias favorecidas vêm de origem rica, o que não era necessariamente o espírito do que se supunha seria a ação afirmativa. Mas, em geral há um antigo ressentimento relativo a práticas de contratação, à ideia de que os brancos acabam em desvantagem no mercado de trabalho ao se favorecer minorias ou mesmo as mulheres, no caso. Então tenho dúvidas até que ponto a decisão foi realmente impulsionada pelo desejo de alcançar um padrão em que cor, raça, etnia não sejam levadas em consideração. Muito disso me parece impulsionado pela ideia de que foram dadas vantagens injustas especialmente durante períodos econômicos difíceis. Assim, o contra-argumento para a decisão é de que a sociedade não é colour blind, e há uma História de grupos sendo desprivilegiados. Então, ao se ignorar as raízes históricas, apenas se coloca uma venda na realidade da sociedade na qual se vive.
De que forma a Revolução Francesa é origem da atual situação de grupos minoritários na França?
A França foi uma potência europeia porque tinha a maior população da Europa. Mas, na Revolução Francesa, aprovou-se uma lei de herança que obrigava a divisão de terras de forma igual – e a maioria das pessoas vivia na zona rural. Como virou desvantagem ter uma família grande, a população rural passou a diminuir após a Revolução Francesa, fazendo o crescimento populacional francês cair décadas antes dos outros países europeus. Enquanto Alemanha e Itália, com populações em crescimento, enviavam imigrantes aos EUA ou Brasil, a população francesa encolhia durante a Revolução Industrial. Na última metade do século 19, a França, um país sem história migratória, começou a buscar trabalhadores na Itália, Polônia, inicialmente perto do próprio território. Mas, com a necessidade de reconstruir o país durante os anos 1950 e 1960, e com o posterior colapso da Cortina de Ferro e o crescimento do continente, tiveram de recorrer ao Império. A Argélia, a colônia francesa mais importante no norte da África, era considera uma extensão da França, sendo mais fácil trazer pessoas de lá. Mas não foi planejado, e nem havia intenção de que tivessem família e permanecessem. Era tipo "vire-se, construa sua própria casa, descubra como vai viver". Quando chegam ao fim os crescimentos milagrosos pós-Segunda Guerra e o desemprego começa a crescer, os franceses passam a perceber que têm essa grande população estrangeira cujos filhos estão enraizados no país. Há uma reação xenófoba que remonta ao século 19, algo também visto nos anos 1930, quando estavam atrás de italianos ou poloneses e, mais tarde, judeus [na França de Vichy, regime que colaborou com os nazistas entre 1940 e 1942]. Assim, a França é um país que não poderia ter crescido e se desenvolvido sem os estrangeiros. Mas eles não são completamente integrados à identidade nacional do país, com sua significativa chegada tendo sido esquecida. As bolsas para imigrantes na França, por exemplo, só começaram nos anos 1980. Até essa época, a imigração era entendida como trabalhadores solteiros que voltariam para casa assim que tivessem juntado dinheiro. Agora é vista como comunidades disfuncionais do subúrbio.
Como essa memória é trabalhada nessa comunidade?
Meu trabalho de pesquisa centrou na primeira geração de argelinos a crescer na França, que estavam na casa de 20 anos nos anos 1980. Muitos tentavam lembrar e reivindicar seu passado por meio da expressão cultural e também da política, descreviam como era crescer em condições horríveis de habitação. Mencionavam Nanterre, onde a convulsão social deste ano começou na periferia de Paris, na época uma enorme favela. Os imigrantes que viviam ali arrecadavam dinheiro para financiar os combatentes argelinos que tentavam lutar contra os franceses [pela independência], então lá houve terríveis incêndios, havia uma completa negligência em relação a essa comunidade. Eles se descreviam como a "geração invisível": não eram reconhecidos, não apareceram em cena até os anos 1970 e 1980, quando houve escalada de violência policial, tumultos raciais e a ascensão da extrema direita da Frente Nacional com a plataforma anti-imigrante "somos 4 milhões de desempregados, temos 4 milhões de imigrantes". E usavam Joana d'Arc, e extrema direita ainda a usa em grandes manifestações, com a clara ideia de que, para restaurar a grandiosidade da França, será necessário remover os estrangeiros. Então, normalmente é retratado em termos de que essas minorias são muito culturalmente diferentes para se integrar à sociedade. Há uma ideia xenófoba de que há um inimigo interno que ameaça transformar a sociedade e minar seus valores e, como vêm de uma cultura com valores muito diferentes, não deviam ser acomodados. E, quanto mais se faz para acomodá-los, mais há uma ladeira escorregadia que não se quer descer. Assim, é possível entender o ressentimento de ser ignorado, esquecido, policiado dessa comunidade. Essa raiva não aparece em nenhum lugar na cobertura de imprensa [francesa dos atuais protestos], que captura o sensacionalismo, os jovens das minorias com capuzes, rostos cobertos usando fogos de artifício, que se centra no caos e nos eventos espetaculares e não há nenhuma História como contexto. Ao mesmo tempo, porém, há muita amnésia dentro dessa comunidade, não só entre as gerações mais novas. Houve esforços de base para tentar criar um movimento nacional, fazer lobby e organização política nos anos 1980, mas muito disso desandou, acabou esquecido. Então ocorre essa repetição de ciclos de violência, mobilização e esquecimento.
E como a própria França trabalha essa memória?
Na Argélia, havia quase 1 milhão de europeus que viveram lá por gerações e não queriam sair. Houve uma quantidade imensa de violência e terrorismo perpertrado por eles. Houve motins no Exército francês na Argélia durante a Guerra de Independência (1954-1962), tentaram assinar o então presidente francês, Charles de Gaulle, porque ele queria sair da Argélia. Após conflito, a França adotou uma política de anistia com a ideia de esquecer, varrer as coisas sob o tapete. Esse tema não foi incluído no sistema educacional por um bom tempo. Assim, é uma ferida não totalmente curada, e há coisas no presente que servem como gatilho para esse passado não resolvido. Além disso, como a França é um país antigo cujas instituições foram amplamente desenvolvidas antes de que houvesse grandes ondas migratórias, não se vê como uma nação de imigrantes da mesma forma que os EUA – o que leva a um duplo esquecimento em relação à difícil memória do passado na Argélia. Portanto, é possível olhar a violência atual da França estritamente em termos socioeconômicos: essas são comunidades com alto desemprego, pessoas se sentem desesperadas e sem esperança em relação ao futuro, há questões policiais. Mas há um contexto mais amplo, de estar em uma cultura que não te reconhece como parte de sua História, e parte dessa raixa advém de viver em uma cultura que nunca completamente viu ou aceitou essas populações ou que talvez apenas ofereceu formas limitadas de pertencimento e de assimilação na cultura dominante.

