Gaza: palestinos reagem aos planos de Trump para "limpar" o território palestino
Moradores revivem trauma de catástrofe de 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a fugir de suas casas durante a criação do Estado de Israel
Mesmo antes das falas mais recentes do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre a ideia de o Estado americano assumir o controle da Faixa de Gaza e reassentar de forma permanente as cerca de 2 milhões de pessoas que vivem no território, os palestinos já indicavam que não aceitariam a proposta.
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Em janeiro, o republicano havia apresentado um plano para “limpar Gaza” e enviar os moradores para o Egito e a Jordânia — ideia que foi amplamente rejeitada na ocasião.
Por isso, quando foi anunciado que o americano encontraria o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, na terça-feira, a reação dos palestinos foi praticamente unânime: “Não sairemos”, sintetizou Hatem Azam, um morador de Rafah.
— Trump acha que Gaza é um monte de lixo — disse o homem de 34 anos, irritado com as palavras que o americano usou em janeiro ao falar sobre seu plano para “limpar” Gaza.
— Ele quer obrigar o Egito e a Jordânia a acolher migrantes, como se fossem propriedade dele. Trump e Netanyahu precisam entender a realidade do povo palestino e de Gaza. Trata-se de um povo profundamente enraizado na sua terra.
Na terça-feira, Trump afirmou que o governo americano iria “assumir o controle” da Faixa de Gaza no processo de reconstrução do enclave, após quase um ano e meio de guerra, sem descartar o emprego de tropas americanas em solo palestino.
Ao lado do premier israelense, ele mais uma vez defendeu que os palestinos de Gaza sejam realocados — desta vez, porém, acrescentando que a realocação deveria ocorrer “de forma permanente”.
Sem dar mais detalhes, ele disse que os EUA poderiam atuar no desmantelamento de bombas, na demolição de prédios destruídos e na criação de um “desenvolvimento econômico que forneceria empregos ilimitados e habitação para as pessoas da região”.
— Eu não acho que as pessoas deveriam voltar para Gaza. Por que eles gostariam de retornar? O lugar tem sido um inferno — disse Trump em reunião com Netanyahu na terça-feira, atraindo críticas internacionais.
Trump não revelou quais moradores seriam beneficiados pela presença americana, tampouco quais seriam as bases legais para a implementação da medida, ou se colonos israelenses serão admitidos de volta a Gaza.
No entanto, o republicano ressaltou que o enclave — onde cerca de 47 mil a 61 mil pessoas morreram nos bombardeios israelenses e, segundo as Nações Unidas, mais de dois terços das edificações foram destruídas — pode se tornar “a Riviera do Oriente Médio”.
— Nós estamos firmes aqui — disse à CNN o palestino Amir Karaja, acrescentando que preferia “comer os escombros” a ser forçado a deixar sua terra natal. — Esta é a nossa terra, e somos os donos legítimos e verdadeiros dela. Eu não serei deslocado. Nem Trump e nem mais ninguém pode nos arrancar de Gaza.
Memórias de um trauma coletivo
Parada no meio de sua casa severamente danificada, Iyam Jahjouh disse à rede americana que também não cogita se mudar.
O teto e várias paredes de sua residência foram destruídos, restando apenas um telhado improvisado.
Ainda assim, a construção é uma das menos afetadas na região, amplamente devastada.
Ela reforçou que, apesar do enorme cenário de destruição na atual Faixa de Gaza — e de tudo o que aconteceu no território de cerca de 360 km² (pouco menor que o município de Maricá) nos últimos meses, os palestinos ainda desejam permanecer.
— Por que eu deveria deixar meu país? Você quer me mandar para o Egito ou para a Jordânia? Não, não aceitaremos. Vamos montar uma tenda e, aconteça o que acontecer, não deixaremos nosso país. Não nos importamos com as ameaças de Trump ou Netanyahu.
Cerca de 70% dos habitantes de Gaza já estão registrados como refugiados na ONU, muitos deles descendentes de palestinos deslocados em 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a fugir de suas casas durante a criação do Estado de Israel.
Eles foram impedidos de retornar a suas casas no que hoje é o território israelense. Os árabes chamam este evento de Nakba (“catástrofe”) — e veem, no deslocamento de mais de 1,9 milhão de palestinos no enclave nos últimos 15 meses, o reavivamento da memória de um êxodo de dimensões bíblicas e que até hoje é um trauma coletivo.
— Vivemos sob bombardeio por um ano e meio. Depois de todo esse sofrimento, fome, bombardeio e morte, não sairemos de Gaza facilmente — disse Ahmad Safi à CNN, que hoje vende vegetais em Khan Younis. — Preferimos o inferno de Gaza ao paraíso de qualquer outro país. Não deixaríamos esta terra mesmo se nos dessem todo o dinheiro do mundo.
O Escritório de Comunicação do Governo de Gaza, controlado pelo grupo terrorista Hamas desde 2007, afirmou que cerca de 500 mil palestinos deslocados — quase um quarto da população do enclave — viajaram de volta para o norte da Faixa de Gaza nas primeiras 72 horas após as forças israelenses começarem a permitir o retorno de civis, na segunda-feira passada, como parte do frágil acordo de cessar-fogo e libertação de reféns. Mesmo com um cenário desesperador, sem água ou eletricidade e com muitos escombros, a maior parte dos moradores aparenta estar determinada a ficar e a reconstruir a região.
— Já fui deslocado 12 vezes — disse Saleh al-Sawalha também à rede americana, destacando que os palestinos são “um povo que se recusa a desistir”. — Íamos para um lugar e eles (os israelenses) nos diziam que seria bombardeado. Íamos para outro, e diziam que seria bombardeado. Fomos de um lugar para outro. Estamos exaustos. Não há nada como estar de volta à sua casa. É tudo o que queremos. Eu não vou sair. Por favor, envie esta mensagem para o presidente Trump: essa é a última coisa que passaria pela nossa cabeça.
‘Proposta racista’ e ‘limpeza étnica’
Nesta quarta-feira, um dia após a declaração do republicano, o Hamas rejeitou enfaticamente a ideia de os EUA assumirem o controle de Gaza, afirmando que a fala do republicano foi racista e que a proposta aumentaria a violência no Oriente Médio.
Em comunicado, o porta-voz do grupo palestino, Abdel Latif al-Qanu, disse que “a posição racista americana” está alinhada com a da “extrema direita israelense, que consiste em deslocar” a população palestina e “erradicar a nossa causa”.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, por sua vez, disse que o plano do presidente americano equivaleria a uma “limpeza étnica” e que, se colocado em prática, poderá tornar “impossível a existência de um Estado palestino para sempre”.
E o enviado palestino às Nações Unidas, Riyad Mansour, disse que os líderes mundiais e o povo deveriam respeitar o desejo dos palestinos de permanecer na Faixa de Gaza — algo que também foi apoiado por nações como Egito e Jordânia, dois aliados mais próximos de Washington na região.
O Egito também declarou que os palestinos não devem deixar Gaza enquanto a região está sendo reconstruída, “especialmente considerando seu apego à terra”.
A Arábia Saudita reafirmou seu apoio inabalável à criação de um Estado palestino e disse que não se comprometerá com a normalização das relações com Israel sem garantias nesse sentido.
E o Catar afirmou que as nações árabes irão ajudar a reconstruir a Faixa de Gaza enquanto os palestinos permanecerem no enclave, indicando que o foco deve ser o cessar-fogo permanente.
Na Jordânia, o rei Abdullah II reiterou sua rejeição a quaisquer planos que incluam o deslocamento de palestinos de Gaza ou da Cisjordânia ocupada, destacando a “necessidade de interromper as atividades de assentamento (judaico) e rejeitar quaisquer tentativas de anexação de terras”.
A declaração da Jordânia, assim como da Arábia Saudita, do Egito e de outros aliados árabes, reforça o que já foi dito por essas lideranças na semana passada, quando Trump deu os primeiros indícios de seu projeto para o território palestino.

