Sáb, 06 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
Gaza

Gaza: palestinos reagem aos planos de Trump para "limpar" o território palestino

Moradores revivem trauma de catástrofe de 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a fugir de suas casas durante a criação do Estado de Israel

Um menino corre com uma bandeira palestina sobre um monte de escombros em um acampamento para pessoas deslocadas pelo conflito em Bureij, no centro da Faixa de Gaza Um menino corre com uma bandeira palestina sobre um monte de escombros em um acampamento para pessoas deslocadas pelo conflito em Bureij, no centro da Faixa de Gaza  - Foto: Eyad Baba / AFP

Mesmo antes das falas mais recentes do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre a ideia de o Estado americano assumir o controle da Faixa de Gaza e reassentar de forma permanente as cerca de 2 milhões de pessoas que vivem no território, os palestinos já indicavam que não aceitariam a proposta.

Em janeiro, o republicano havia apresentado um plano para “limpar Gaza” e enviar os moradores para o Egito e a Jordânia — ideia que foi amplamente rejeitada na ocasião.

Por isso, quando foi anunciado que o americano encontraria o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, na terça-feira, a reação dos palestinos foi praticamente unânime: “Não sairemos”, sintetizou Hatem Azam, um morador de Rafah.

— Trump acha que Gaza é um monte de lixo — disse o homem de 34 anos, irritado com as palavras que o americano usou em janeiro ao falar sobre seu plano para “limpar” Gaza.

— Ele quer obrigar o Egito e a Jordânia a acolher migrantes, como se fossem propriedade dele. Trump e Netanyahu precisam entender a realidade do povo palestino e de Gaza. Trata-se de um povo profundamente enraizado na sua terra.

Na terça-feira, Trump afirmou que o governo americano iria “assumir o controle” da Faixa de Gaza no processo de reconstrução do enclave, após quase um ano e meio de guerra, sem descartar o emprego de tropas americanas em solo palestino.

Ao lado do premier israelense, ele mais uma vez defendeu que os palestinos de Gaza sejam realocados — desta vez, porém, acrescentando que a realocação deveria ocorrer “de forma permanente”.

Sem dar mais detalhes, ele disse que os EUA poderiam atuar no desmantelamento de bombas, na demolição de prédios destruídos e na criação de um “desenvolvimento econômico que forneceria empregos ilimitados e habitação para as pessoas da região”.

— Eu não acho que as pessoas deveriam voltar para Gaza. Por que eles gostariam de retornar? O lugar tem sido um inferno — disse Trump em reunião com Netanyahu na terça-feira, atraindo críticas internacionais.

Trump não revelou quais moradores seriam beneficiados pela presença americana, tampouco quais seriam as bases legais para a implementação da medida, ou se colonos israelenses serão admitidos de volta a Gaza.

No entanto, o republicano ressaltou que o enclave — onde cerca de 47 mil a 61 mil pessoas morreram nos bombardeios israelenses e, segundo as Nações Unidas, mais de dois terços das edificações foram destruídas — pode se tornar “a Riviera do Oriente Médio”.

— Nós estamos firmes aqui — disse à CNN o palestino Amir Karaja, acrescentando que preferia “comer os escombros” a ser forçado a deixar sua terra natal. — Esta é a nossa terra, e somos os donos legítimos e verdadeiros dela. Eu não serei deslocado. Nem Trump e nem mais ninguém pode nos arrancar de Gaza.

Memórias de um trauma coletivo
Parada no meio de sua casa severamente danificada, Iyam Jahjouh disse à rede americana que também não cogita se mudar.

O teto e várias paredes de sua residência foram destruídos, restando apenas um telhado improvisado.

Ainda assim, a construção é uma das menos afetadas na região, amplamente devastada.

Ela reforçou que, apesar do enorme cenário de destruição na atual Faixa de Gaza — e de tudo o que aconteceu no território de cerca de 360 km² (pouco menor que o município de Maricá) nos últimos meses, os palestinos ainda desejam permanecer.

— Por que eu deveria deixar meu país? Você quer me mandar para o Egito ou para a Jordânia? Não, não aceitaremos. Vamos montar uma tenda e, aconteça o que acontecer, não deixaremos nosso país. Não nos importamos com as ameaças de Trump ou Netanyahu.

Cerca de 70% dos habitantes de Gaza já estão registrados como refugiados na ONU, muitos deles descendentes de palestinos deslocados em 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a fugir de suas casas durante a criação do Estado de Israel.

Eles foram impedidos de retornar a suas casas no que hoje é o território israelense. Os árabes chamam este evento de Nakba (“catástrofe”) — e veem, no deslocamento de mais de 1,9 milhão de palestinos no enclave nos últimos 15 meses, o reavivamento da memória de um êxodo de dimensões bíblicas e que até hoje é um trauma coletivo.

— Vivemos sob bombardeio por um ano e meio. Depois de todo esse sofrimento, fome, bombardeio e morte, não sairemos de Gaza facilmente — disse Ahmad Safi à CNN, que hoje vende vegetais em Khan Younis. — Preferimos o inferno de Gaza ao paraíso de qualquer outro país. Não deixaríamos esta terra mesmo se nos dessem todo o dinheiro do mundo.

O Escritório de Comunicação do Governo de Gaza, controlado pelo grupo terrorista Hamas desde 2007, afirmou que cerca de 500 mil palestinos deslocados — quase um quarto da população do enclave — viajaram de volta para o norte da Faixa de Gaza nas primeiras 72 horas após as forças israelenses começarem a permitir o retorno de civis, na segunda-feira passada, como parte do frágil acordo de cessar-fogo e libertação de reféns. Mesmo com um cenário desesperador, sem água ou eletricidade e com muitos escombros, a maior parte dos moradores aparenta estar determinada a ficar e a reconstruir a região.

— Já fui deslocado 12 vezes — disse Saleh al-Sawalha também à rede americana, destacando que os palestinos são “um povo que se recusa a desistir”. — Íamos para um lugar e eles (os israelenses) nos diziam que seria bombardeado. Íamos para outro, e diziam que seria bombardeado. Fomos de um lugar para outro. Estamos exaustos. Não há nada como estar de volta à sua casa. É tudo o que queremos. Eu não vou sair. Por favor, envie esta mensagem para o presidente Trump: essa é a última coisa que passaria pela nossa cabeça.

‘Proposta racista’ e ‘limpeza étnica’
Nesta quarta-feira, um dia após a declaração do republicano, o Hamas rejeitou enfaticamente a ideia de os EUA assumirem o controle de Gaza, afirmando que a fala do republicano foi racista e que a proposta aumentaria a violência no Oriente Médio.

Em comunicado, o porta-voz do grupo palestino, Abdel Latif al-Qanu, disse que “a posição racista americana” está alinhada com a da “extrema direita israelense, que consiste em deslocar” a população palestina e “erradicar a nossa causa”.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, por sua vez, disse que o plano do presidente americano equivaleria a uma “limpeza étnica” e que, se colocado em prática, poderá tornar “impossível a existência de um Estado palestino para sempre”.

E o enviado palestino às Nações Unidas, Riyad Mansour, disse que os líderes mundiais e o povo deveriam respeitar o desejo dos palestinos de permanecer na Faixa de Gaza — algo que também foi apoiado por nações como Egito e Jordânia, dois aliados mais próximos de Washington na região.

O Egito também declarou que os palestinos não devem deixar Gaza enquanto a região está sendo reconstruída, “especialmente considerando seu apego à terra”.

A Arábia Saudita reafirmou seu apoio inabalável à criação de um Estado palestino e disse que não se comprometerá com a normalização das relações com Israel sem garantias nesse sentido.

E o Catar afirmou que as nações árabes irão ajudar a reconstruir a Faixa de Gaza enquanto os palestinos permanecerem no enclave, indicando que o foco deve ser o cessar-fogo permanente.

Na Jordânia, o rei Abdullah II reiterou sua rejeição a quaisquer planos que incluam o deslocamento de palestinos de Gaza ou da Cisjordânia ocupada, destacando a “necessidade de interromper as atividades de assentamento (judaico) e rejeitar quaisquer tentativas de anexação de terras”.

A declaração da Jordânia, assim como da Arábia Saudita, do Egito e de outros aliados árabes, reforça o que já foi dito por essas lideranças na semana passada, quando Trump deu os primeiros indícios de seu projeto para o território palestino. 

Veja também

Newsletter