Médico questiona condenação de enfermeira acusada de matar bebês no Reino Unido
Pesquisa do Dr. Shoo Lee foi usada para condenar uma enfermeira britânica pelo assassinato de bebês, mas ele afirma que nunca deveria ter sido citada
Quando um dos neonatologistas mais renomados do Canadá, Dr. Shoo Lee, escreveu um artigo acadêmico em 1989, jamais imaginou que um dia ele ajudaria a condenar uma enfermeira britânica por assassinato. No entanto, mais de três décadas depois, foi exatamente o que aconteceu. Lucy Letby, uma ex-enfermeira de uma unidade neonatal no norte da Inglaterra, foi considerada culpada, em dois julgamentos realizados em 2023 e 2024, pelo assassinato ou tentativa de assassinato de 14 bebês sob seus cuidados.
Condenada à prisão perpétua, ela continua presa até hoje. O caso abalou o Reino Unido ao revelar, aparentemente, uma assassina em série implacável que, segundo a acusação, usou métodos bizarros para matar suas pequenas vítimas, muitas delas extremamente prematuras: injetando ar em suas veias, superalimentando-as com leite ou contaminando sua alimentação com insulina.
Para sustentar sete das acusações de assassinato ou tentativa de assassinato, a principal testemunha pericial da acusação se baseou no artigo de 1989 de Lee sobre uma complicação rara em recém-nascidos — embolia gasosa vascular pulmonar — para argumentar que Letby havia injetado ar intencionalmente nas veias dos bebês.
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O único problema? Segundo Lee, o especialista da acusação interpretou seu trabalho de forma equivocada.
— O que eles alegaram foi que o bebê sofreu uma parada e apresentou descoloração da pele, e que isso, portanto, significava embolia gasosa — disse Lee, de 68 anos, em entrevista concedida no mês passado, em Londres: — Mas isso não é o que a pesquisa mostra.
Essa constatação levou Lee a uma missão moral: revisar o caso de Letby. Trabalhando de forma voluntária, ele reuniu 14 especialistas de todo o mundo para avaliar as evidências clínicas. No mês passado, ele revelou as conclusões explosivas do grupo: “Não há nenhuma evidência médica que comprove que houve má conduta causando morte ou lesão em nenhum dos bebês pelos quais Letby foi acusada”.
— Se não houve má conduta, não houve assassinato. Se não há assassinato, não há assassina. E se não há assassina, o que ela está fazendo na prisão? — questiona Lee.
Letby já esgotou todas as possibilidades de recurso nos tribunais. Sua única esperança agora está em um pequeno órgão independente, a Comissão de Revisão de Casos Criminais — Criminal Cases Review Commission (CCRC), em inglês —, responsável por investigar possíveis erros judiciais.
'Eu não sabia se ela era inocente ou culpada'
Lee, que se aposentou em 2021 e foi viver em uma fazenda no interior de Alberta, sabia pouco sobre o caso de Letby até receber um e-mail em sua caixa de entrada, em outubro de 2023.
Letby sempre alegou inocência, e seu advogado queria que Lee revisasse as evidências médicas.
— A princípio, achei que fosse spam, porque com que frequência você recebe um e-mail desses? — disse Lee.
Após uma segunda mensagem, percebeu que o pedido era real.
Ao estudar as transcrições do julgamento de Letby, Lee imediatamente percebeu que sua pesquisa havia sido mal interpretada.
— Eu não sabia se ela era inocente ou culpada. Mas, independentemente disso, ninguém pode ser condenado com base em evidências erradas. Isso simplesmente não está certo — lembra o médico.
Ele concordou em ajudar no pedido de apelação de Letby, enviando uma carta ao Tribunal de Apelação da Inglaterra e, mais tarde, prestando depoimento por videoconferência. No entanto, o tribunal rejeitou o pedido, alegando que o testemunho de Lee deveria ter sido apresentado no julgamento.
Foi então que Lee decidiu reunir uma equipe de especialistas em neonatologia para analisar o caso.
— Esse painel de especialistas é simplesmente o melhor que se pode encontrar — disse ele, citando nomes como o chefe de neonatologia do Hospital Infantil da Filadélfia, um ex-presidente do Colégio Real de Pediatria do Reino Unido e o ex-diretor da UTI neonatal do Hospital Infantil de Boston.
Uma exigência fundamental feita por Lee foi que o relatório do painel fosse divulgado independentemente de suas conclusões — mesmo que reforçasse a culpa de Letby.
'Tragédias vão acontecer'
Os especialistas, que também trabalharam voluntariamente, analisaram minuciosamente as causas da morte ou deterioração de cada um dos 17 bebês pelos quais Letby foi inicialmente acusada de assassinato, ou tentativa de assassinato.
Dois especialistas avaliaram separadamente as anotações médicas de cada bebê. Se houvesse discordância, um terceiro especialista era chamado para desempatar. O processo, extremamente detalhado, levou quatro meses. Mas os resultados finais foram claros, segundo Lee.
— Em todos os casos, a morte ou o agravamento do quadro foram causados por fatores naturais, ou por atendimento médico deficiente — afirmou ele em uma coletiva de imprensa no mês passado.
De acordo com a análise do painel, parte da equipe do hospital estava cuidando de bebês extremamente prematuros ou gravemente enfermos em uma unidade que não tinha estrutura adequada para esses casos.
— Você coloca médicos em lugares sem a expertise e sem a infraestrutura necessária para cuidar de bebês que exigem cuidados especializados. E se você faz isso, tragédias vão acontecer — explica.
Ninguém nunca viu Letby machucando um bebê, e as primeiras dúvidas sobre sua culpa surgiram em um artigo da revista The New Yorker, publicado em maio de 2024. Desde então, dezenas de especialistas em medicina e estatística manifestaram preocupações sobre as provas apresentadas no julgamento.
O Dr. Dewi Evans, principal testemunha pericial da acusação, não respondeu aos pedidos de comentário, mas criticou publicamente a revisão feita pelo painel e reafirmou sua posição.
O Hospital Countess of Chester, onde ocorreram as mortes, afirmou estar focado na investigação policial em andamento e em um inquérito público instaurado pelo governo no ano passado para apurar como uma assassina em série poderia ter agido impunemente por tanto tempo. No início desta semana, os ex-gestores do hospital pediram a suspensão do inquérito após a divulgação da revisão de Lee, mas o juiz negou o pedido, afirmando que o objetivo da investigação nunca foi determinar a culpa de Letby.
O advogado atual de Letby, Mark McDonald, pretende incluir o relatório completo de Lee no pedido de revisão do caso junto à Comissão de Revisão de Casos Criminais, que tem o poder de encaminhar o caso de volta ao Tribunal de Apelação. A comissão declarou no mês passado que “recebeu um pedido preliminar relacionado ao caso da Sra. Letby e já iniciou o processo de análise”.
A mãe de uma das crianças que Letby foi condenada por tentar matar criticou as conclusões do painel de especialistas, e um porta-voz da comissão pediu “que todos se lembrem das famílias afetadas”.
Lee afirmou que o bem-estar dessas famílias sempre esteve no centro de sua análise, após passar quatro décadas cuidando de bebês.
— Posso garantir uma coisa: as famílias querem saber a verdade — disse ele: — Elas querem a verdade, não importa se for dolorosa ou não. Elas querem saber o que realmente aconteceu.

