Microsoft paga R$ 30 mil a escritores que cederem livros para IAs. Eles deveriam aceitar?
Em artigo publicado na Bloomberg, escritora Alice Robb reflete sobre o dilema enfrentado por autores diante da oferta de licenciamento de obras. Um preço justo existe?
"Solicitação da HarperCollins sobre IA — urgente." Esse foi o assunto de um e-mail que a jornalista e escritora americana Alice Robb recebeu recentemente. A mensagem trazia uma proposta da Microsoft: o licenciamento dos títulos do catálogo da HarperCollins, incluindo um livro da autora, para treinar modelos de inteligência artificial.
Pelo acordo, a Microsoft pagaria US$ 5.000 (cerca de R$30 mil) por título à editora, que então repassaria metade desse valor aos autores que aceitassem a oferta, incluindo Alice Robb.
Em artigo publicado na Bloomberg, a escritora relatou que o primeiro impulso que teve ao ler a mensagem foi delegar a decisão à sua agente. A profissional, no entanto, se esquivou. “Ainda não sabemos e talvez não saibamos por um bom tempo se esse é um acordo bom, ruim ou mediano”, respondeu à Robb.
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Não havia precedentes para esse tipo de contrato. “Tampouco havia espaço para negociação", acrescentou Robb no artigo publicado na Bloomberg.
“Eu tinha uma semana para decidir: aceitar os US$ 2.500 (ou US$ 2.125 depois da comissão da minha agente) ou recusar – na esperança de conseguir mais dinheiro no futuro, nenhum dinheiro nunca ou simplesmente para poder dizer que me recusei a contribuir para a minha própria obsolescência", completou ela.
“Sou autônoma, então estou sempre juntando todo o dinheiro que posso”, confidenciou uma autora que aceitou a proposta da HarperCollins, mas preferiu não ser identificada porque “pensou pouco antes de decidir”.
Robb contou que, quando consultou um grupo de escritores de cinco pessoas, todos, exceto um, admitiram que aceitariam o acordo. “Seria difícil não aceitar”, respondeu um deles. “Tempos difíceis”, disse outro. Há um sentimento de resignação, até mesmo niilismo nesses casos, avaliou a jornalista.
“Não parece haver muita energia para lutar contra nada”, opinou Howard Bryant, autor da editora Beacon Press, que, no entanto, rejeitou uma oferta pelos direitos de sua obra para uma inteligência artificial. “Estamos em um tempo de rendição.”
Pirataria está disseminada
De acordo com um relatório de 2023 da Authors Guild, a renda anual mediana dos escritores em tempo integral – incluindo adiantamentos, royalties e trabalhos paralelos como jornalismo e cursos – foi de US$ 20.000 naquele ano (cerca de R$ 115 mil).
No Reino Unido, a situação é ainda pior: um estudo de 2022 revelou que autores britânicos profissionais ganham uma mediana de £ 7.000 por ano (algo em torno de R$ 50,4 mil pela cotação atual).
Para Robb, os criadores de conteúdo não estão insensíveis ao roubo de propriedade intelectual, e muitas já passaram por essa experiência.
A pirataria de livros online é um problema galopante e custa à indústria editorial centenas de milhões de dólares em vendas a cada ano, de acordo com a Authors Guild, organização que representa escritores profissionais.
No artigo publicado na Bloomberg, a jornalista contou que, em 2018, encontrou diversas versões em PDFs, pirateadas, do seu livro Why We Dream: The Transformative Power of Our Nightly Journey (“Por que sonhamos: o poder transformador da nossa jornada noturna”, em tradução livre).
Segundo Robb, seu editor à época comparou a remoção desses arquivos de sites ilegais a uma tentativa de enxugar gelo.
Além de não ter sido remunerada pelas versões gratuitas, Robb também nunca recebeu nada por um resumo de 34 páginas da sua obra que pode ser comprado na Amazon sob o título Resumo de "Why We Dream", de Alice Robb.
A escritora expressou sua frustração ao afirmar que a impressão que tem é a de que seu trabalho está fora de seu controle. Esse sentimento de impotência, segundo ela, não se restringe ao mercado editorial.
Ela cita o caso do ator Chris Sirois, que se manifestou sobre o uso não autorizado de sua imagem em perfis falsos de redes sociais. Ao comentar o caso, ele justificou o fato de ter dado consentimento para que sua imagem fosse utilizada em um chatbot de inteligência artificial (IA): "Neste mundo com tanto conteúdo, o quanto isso importa?".
Existe negociação justa?
Robb contou que, quando recebeu a proposta da HarperCollins, deu-se conta de que os modelos de inteligência artificial já haviam vasculhado grande parte da internet – incluindo, possivelmente, centenas de artigos que ela havia escrito ao longo da carreira.
A Informa, proprietária da editora acadêmica Taylor & Francis, por exemplo, já havia vendido seus catálogos para a Microsoft sem sequer notificar os autores, muito menos oferecer qualquer forma de compensação. O padrão estava baixo.
Robb destacou que o jornalista financeiro Felix Salmon, autor publicado pela HarperCollins, aceitou o acordo, permitindo que a Microsoft treinasse seu modelo de linguagem com seu livro The Phoenix Economy, lançado em 2023. “Qualquer coisa é melhor do que zero, que é o que temos recebido durante toda essa história da IA”, afirmou ele.
Nesse contexto, a oferta parecia mais um gesto simbólico do que uma negociação justa. Ainda assim, Robb diz que se sentia incapaz de avaliar as implicações do contrato. "Reli o contrato, que só levantou mais dúvidas", relatou.
A Microsoft prometia limitar o número de palavras que a inteligência artificial poderia usar em uma única saída – mas o que isso significava na prática?
A licença expiraria em três anos, mas o modelo de IA realmente “desaprenderia” seu livro em 2028? Além disso, essa seria sua única chance de monetizar os direitos de Why We Dream em relação à IA? Outra questão, mais ética, também a preocupava: colaborar com a IA seria, por si só, um ato questionável?
Big Techs processadas
Especialistas em propriedade intelectual concordam que os criadores de conteúdo devem ser compensados de alguma forma. “Essas IAs estão utilizando grandes quantidades de material protegido por direitos autorais”, afirmou Enrico Bonadio, professor de direito da City, University of London. “Elas não são instituições de caridade. Essas empresas deveriam pagar pelo conteúdo que utilizam.”
A discussão se estende para além do setor editorial. Na indústria da música, a disputa entre artistas e grandes empresas de tecnologia também se intensifica.
“É Davi contra Golias”, disse Darrell Alexander, agente criativo e produtor musical para o cinema. Segundo ele, as big techs “estão roubando músicas e são extremamente descaradas quanto a isso”.
Além disso, há indícios de que os modelos de IA podem estar ficando sem dados humanos de alta qualidade para seguir evoluindo – e substituir esse material não é simples.
Um estudo recente demonstrou que sistemas treinados exclusivamente com conteúdo gerado por máquinas acabam colapsando após algumas gerações. “Há algo sobre a diversidade de perspectivas e a distribuição de ideias nos dados criados por humanos que é essencial para que a IA funcione”, explicou Chris Mammen, advogado de propriedade intelectual no Vale do Silício.
'Não sei se tomei a decisão certa'
Enquanto isso, dezenas de processos judiciais contra empresas de IA seguem tramitando nos tribunais dos Estados Unidos. Figuras públicas, veículos de comunicação como The New York Times e grandes gravadoras, como Sony e Universal, acusam empresas como Meta, Microsoft e OpenAI de violação de direitos autorais.
Caso sejam condenadas, essas decisões podem servir como referência para que autores e outros criadores exijam acordos mais vantajosos. No entanto, especialistas alertam que o desfecho dessas ações pode levar anos.
Diante desse cenário incerto, Robb disse no artigo da Bloomberg que decidiu buscar mais informações sobre a presença de sua obra nos bancos de dados das IAs.
“A confirmação de que o livro em que passei a maior parte dos meus 20 e poucos anos escrevendo já havia sido alimentado por robô não me deixou surpresa – mas, por um momento, senti tristeza", escreveu a autora. “O estrago, no entanto, já estava feito. E os US$ 2.125, pensei, poderiam me fazer sentir um pouco melhor. Então, aceitei. Não sei se tomei a decisão certa. Pelo que vejo, ninguém sabe", concluiu Robb.

