"Ninguém está a salvo": irlandês que excedeu visto por três dias passou meses preso nos EUA
Thomas, de 35 anos, tinha ido visitar família da namorada, que mora no estado da Geórgia, mas foi impedido por motivos de saúde de pegar o voo de volta pra casa e acabou sendo levado por agentes de imigração
Em março deste ano, um irlandês de 35 anos acompanhava a visita do primeiro-ministro do país europeu, Micheál Martin, ao presidente americano, Donald Trump, através do noticiário. O que pode parecer uma atividade cotidiana se tornou um dos maiores pesadelos da vida de Thomas (que preferiu não revelas o nome completo), já que o engenheiro acompanhou as notícias sobre o encontro diplomático que acontecia na Casa Branca através de uma televisão instalada no pátio de um presídio federal.
Ele foi detido e preso no fim do ano passado nos EUA por agentes do Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) após exceder um visto de turismo por três dias por conta de uma ordem médica.
O homem, que é pai de três filhos, tinha ido ao país em setembro de 2024 para visitar a família da namorada, que é americana, no estado da Geórgia, e planejava voltar para casa em outubro. Thomas tinha entrado no país usando um visto automático, dado para cidadãos de estados membros da União Europeia, que tem duração total de 90 dias. Agora, ele está proibido de voltar aos Estados Unidos por dez anos.
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Apesar de ter sido detido ainda nas últimas semanas do mandato de Joe Biden como presidente americano, a prisão segue o endurecimento das políticas migratórias criadas ainda nos primeiros dias do governo Trump.
"Ninguém está a salvo"
Thomas passou um total de 100 dias detido e cumpriu pena em três unidades prisionais de diferentes níveis até ser devolvido à Irlanda em março.
Em entrevista ao jornal britânico Guardian, o irlandês afirma que excedeu o tempo do visto pois estava tratando de uma distensão na panturrilha sofrida no fim da viagem, que causou inchaço severo na região e o fez ter dificuldades para andar.
Ele tinha sido proibido de pegar vôos pelo médico que o tratou por pelo menos 8 semanas para evitar coágulos de sangue na área da lesão, o que o faria ficar no país até pouco depois do fim do seu visto, marcado para o dia 8 de dezembro.
— Ninguém está a salvo do sistema — disse Thomas, que afirma ter sido mantido no sistema penitenciário mesmo após pedir para ser deportado e apresentar laudos médicos que comprovavam sua condição de saúde.
De acordo com o engenheiro, por conta da superlotação em presídios causada pelo endurecimento das leis migratórias, ele foi forçado a passar parte do tempo em uma prisão federal para réus criminais, embora estivesse sido detido por uma infração que não contempla este tipo de pena.
Thomas e sua namorada, Malone, estavam visitando a família dela em Savannah, na Geórgia, quando ele sofreu uma mental. Durante o episódio, os dois tiveram uma discussão no quarto de hotel onde estavam, o que fez um hóspede vizinho chamar a polícia.
Malone, que pediu para usar seu nome do meio para proteger a identidade do namorado, disse que esperava que os policiais o levassem para receber tratamento psicológico e não queria vê-lo enfrentando acusações criminais. Mas a polícia o levou à prisão, acusando-o de manter a namorada sob cárcere privado no quarto do hotel, acusação que Malone disse não corresponder a realidade.
Ele foi liberado sob fiança, mas em vez de ser solto, foi levado pelas autoridades de imigração dos EUA, que o transportaram cerca de 160 quilômetros até um centro de triagem de imigrantes ilegais no interior do estado. A instalação é operada pela empresa privada Geo Group em nome do Ice, com capacidade para mais de mil pessoas.
Segundo o relatório do Ice, ele havia permanecido nos EUA três dias além da autorização e não havia outras acusações. David Cheng, advogado que representou Thomas, disse ao Guardian que solicitou a liberação do engenheiro com o compromisso de retornar à Irlanda conforme planejado, mas o Ice recusou.
Em meados de fevereiro, após cerca de dois meses detido, os agentes o colocaram, com quase 50 outros detentos, em uma cela de espera, preparando-os para uma transferência.
— Achei que finalmente estava indo para casa — lembra Thomas.
Após chegar ao local, ele e os demais foram algemados nos pulsos, cinturas e pernas, e transportados por quatro horas até uma penitenciária federal em Atlanta, capital do estado, administrada pelo Bureau Federal de Prisões (BoP).
O BoP abriga réus criminais federais, mas o governo Trump, como parte de seus esforços para expandir as detenções do Ice, passou a colocar imigrantes nas instalações – medida que, segundo ativistas e especialistas em direitos humanos, levou ao caos, superlotação e violação dos direitos dos detentos.
— Fomos tratados como sub-humanos — afirma Thomas, que lembra que as condições e o tratamento pelo BoP eram piores que na detenção do Ice — Eles não estavam preparados para nos receber.
Ele e outros detentos foram colocados em uma área com colchões sujos, baratas e ratos. O BoP parecia não ter roupas suficientes, disse o engenheiro, que recebeu um macacão, mas sem camiseta. Também lhe deram uma cueca usada, rasgada, com manchas marrons. Alguns macacões pareciam ter manchas de sangue e buracos.
Cada detento recebia um rolo de papel higiênico por semana. Ele dividia cela com outra pessoa e só podiam dar descarga três vezes por hora. Estava frequentemente com frio, com apenas um cobertor fino. A comida era uma “gororoba nojenta”, com carne de aparência duvidosa e pedaços de osso ou itens não comestíveis. Ele sentia fome constantemente.
— O pessoal não sabia por que estávamos lá e nos tratavam exatamente como tratariam os outros presos, e nos diziam isso — contou Thomas ao Guardian.
Ele e outros pediram atendimento médico, o que nunca aconteceu.
— Ouvi gente chorando pedindo por ajuda, dizendo que não conseguia respirar, e os funcionários diziam: ‘Não sou médico’, e iam embora.
Ele recebeu a medicação psiquiátrica solicitada, mas os funcionários jogavam o comprimido por debaixo da porta, e às vezes ele tinha que procurá-lo no chão.
Os detentos tinham tempo de recreação em um espaço parcialmente aberto, mas semelhante a uma jaula interna.
— Não dava para ver o lado de fora. Não vi o céu por semanas — lembra ele, que tinha sequelas de uma lesão anterior no quadril e começou a sentir dor intensa devido à falta de movimento.
Sem falar com os filhos
Thomas disse que as transferências do Ice para o BoP pareciam arbitrárias e mal planejadas. Dos quase 50 detentos levados, cerca de 30 foram transferidos de volta uma semana depois, e, na semana seguinte, dois deles retornaram ao BoP.
Na unidade do BoP, representantes do Ice apareciam uma vez por semana para falar com os detentos. Estes se aglomeravam em torno dos agentes e imploravam por atualizações. Os funcionários falavam inglês e espanhol, mas os detentos do Oriente Médio e do norte da África ficavam completamente perdidos.
— Era um pandemônio — disse Thomas. — Não sei como consegui suportar.
Thomas também não conseguiu falar com os filhos, pois não havia como fazer ligações internacionais. Em meados de março, Thomas foi transferido brevemente para outra unidade do Ice. As autoridades não explicaram o motivo, mas dois agentes federais armados o escoltaram em um voo de volta à Irlanda.
Donald Murphy, porta-voz do BoP, confirmou que Thomas esteve sob custódia da agência, mas não comentou seu caso ou as condições da prisão em Atlanta. O BoP agora abriga detentos do Ice em oito de suas prisões e continuará apoiando “os objetivos políticos da administração”, acrescentou Murphy.
Um fardo para a vida toda
Thomas viajava frequentemente aos EUA a trabalho, mas agora questiona se um dia poderá voltar.
— Isso será um fardo para a vida toda — afirma.
Malone, sua namorada, disse que pretende se mudar para a Irlanda para viver com ele.
— Não é uma opção ele vir para cá, e eu não quero mais estar nos Estados Unidos.
Desde que retornou, o engenheiro disse que tem dificuldades para dormir e processar tudo que aconteceu.
— Nunca vou esquecer. Vai levar muito tempo até eu conseguir começar a digerir tudo que passei. Ainda parece irreal. Quando penso nisso, parece um filme que estou assistindo — afirma ele, que tem sofrido com problemas de saúde que atribui à desnutrição e medicamentos inadequados administrados durante a detenção. — Eu não teria me surpreendido se tivesse acabado em Guantánamo ou El Salvador, porque era tudo tão desorganizado.

