Sáb, 13 de Dezembro

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opinião

A proteção da infância como argumento: distorções no debate sobre regulação de plataformas

A presença de crianças e adolescentes em redes sociais é cada vez mais precoce e intensa. Dados da pesquisa TIC Kids Online mostram que, no Brasil, esse uso começa antes mesmo da adolescência, muitas vezes em desacordo com os limites etários definidos pelas próprias plataformas. Em grande parte, esse acesso ocorre com o aval ou a tolerância dos responsáveis, ainda que sem plena consciência dos riscos envolvidos ou do funcionamento dos aplicativos utilizados por seus filhos.

Esperar que famílias compreendam sozinhas como operam algoritmos, mecanismos de personalização e estratégias de monetização ignora a profunda assimetria informacional existente em um país marcado por desigualdades educacionais e baixo letramento digital. Delegar integralmente a proteção da infância online a pais e mães mal informados e frequentemente sobrecarregados não é apenas irrealista, mas injusto. Essa fragilidade é ainda mais evidente diante de plataformas desenhadas para maximizar o engajamento e prolongar o tempo de uso, com estímulos contínuos que desconsideram as especificidades do desenvolvimento infantojuvenil.

A pauta da proteção da infância tem sido recorrentemente mobilizada em discussões sobre responsabilidade de plataformas digitais, inclusive no julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI). Ainda que os temas possam se tangenciar, sua sobreposição compromete ambos os debates, reduzindo os riscos enfrentados por crianças e adolescentes a disputas sobre responsabilização civil ou moderação de conteúdo. Essa apropriação desvia o foco da prevenção e dificulta consensos em torno de medidas eficazes e específicas para os desafios da infância digital.

Os riscos associados à presença de crianças em plataformas digitais exigem uma agenda própria, voltada à prevenção, orientada pelo princípio da proteção integral e sensível às vulnerabilidades específicas do público infantojuvenil. Um dos pontos centrais desse desafio é a ineficácia dos atuais mecanismos de verificação etária. A autodeclaração, ainda amplamente utilizada, é incapaz de impedir que crianças acessem ambientes que não lhes são adequados. Corrigir essa distorção exige soluções técnicas viáveis, proporcionais ao risco e incorporadas desde o desenho da experiência digital — responsabilidade que recai, em primeiro lugar, sobre as próprias empresas.

Essa discussão já mobiliza países como Reino Unido, Austrália, Estados Unidos e membros da União Europeia, que vêm adotando marcos regulatórios mais exigentes em relação à verificação de idade. O Children’s Code britânico, por exemplo, determina que produtos acessíveis a menores adotem, por padrão, configurações que limitem notificações, desativem geolocalização e reduzam práticas de coleta de dados.  São medidas que demonstram como marcos regulatórios podem induzir práticas mais seguras desde a origem.

No entanto, o problema não se restringe à entrada precoce de crianças nas plataformas. Interfaces voltadas à retenção, combinadas a gatilhos de engajamento e coleta intensiva de dados, impactam de forma desproporcional crianças e adolescentes, cuja capacidade crítica ainda está em formação. Sem ajustes estruturais, o ambiente digital continua operando sob uma lógica de atenção e monetização que ignora, ou explora, essas vulnerabilidades.

No Brasil, a consulta pública do Ministério da Justiça sobre classificação indicativa em redes sociais aponta um caminho possível. Mas sua efetividade dependerá da forma como essa informação será apresentada aos responsáveis. Assim como ocorre em meios tradicionais, como os filmes, a faixa etária só cumpre seu papel se for acompanhada de orientações claras e acessíveis, capazes de apoiar pais e responsáveis na mediação ativa do uso digital.

Mesmo as melhores soluções regulatórias e técnicas têm alcance limitado sem um ecossistema de apoio. Investir em campanhas educativas, canais de orientação e recursos integrados às plataformas é essencial para fortalecer o letramento digital das famílias. Sem esse suporte, os esforços de proteção tendem a permanecer fragmentados e, por isso, menos eficazes.

No plano legislativo, o PL 2628/2022, já aprovado no Senado e atualmente em debate na Câmara dos Deputados, avança ao propor obrigações específicas para a proteção de menores em ambientes digitais. As audiências públicas demonstram que o tema vem sendo tratado com a seriedade que merece, reconhecendo sua complexidade e os cuidados que a matéria exige. É fundamental, nesse processo, manter o foco na promoção de uma infância conectada com segurança, autonomia e cidadania digital, sem recorrer a soluções apressadas que, sob o pretexto de proteger, acabem por excluir crianças do espaço online.

Proteger crianças e adolescentes na internet exige mais do que declarações de boas intenções ou responsabilidade ex post. Trata-se de um compromisso concreto com a criação de ambientes compatíveis com seus direitos, limites e necessidades de desenvolvimento. Esse esforço passa, necessariamente, por reconhecer a complexidade do tema e resistir à tentação de transformar a infância em retórica conveniente para agendas que pouco dialogam com os interesses reais desse público.

Conferir proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital implica reconhecer que essa pauta não pode ser tratada como subtema de outras, como o julgamento do art. 19 do MCI. Preservar a integridade da discussão é condição essencial para garantir que crianças e adolescentes sejam tratadas como sujeitos de direitos, e não apenas mobilizadas como argumento em agendas alheias à sua realidade.


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