A Teologia do Domínio e o Iluminismo Sombrio: riscos e perigos de um projeto ideológico
Nos céus, bem mais que aviões de carreira. Na realidade, paira no ar uma espécie de "poluição intelectual", muito bem promovida por um "baixo clero", que se apropria da força exponencial das tais redes sociais. Um fenômeno político de grandeza mundial, mas que se propaga a olhos vistos em território brasileiro. Refiro-me a uma estruturação ideológica, pouco conhecida pela grande maioria dos cidadãos, que tem tomado um vulto deveras surpreendente. Enfim, uma ideologia que absorve duas tendências extremistas: a teologia do domínio e o iluminismo sombrio.
Bem, antes de avançar na direção desses dois pilares de sustentação do status ideológico que quero analisar, esclareço que há um outro bem mais convencional, que ressurgiu com uma velha roupagem, nos recentes rompantes de afronta ao Estado Democrático de Direito. Refiro-me às intenções de um certo "militarismo institucional", algo já traduzido por meio de situações pontuais que compuseram a História do Brasil. Mesmo que parte dos militares não tenha sequer compactuado com essas experiências, os registros históricos revelam que as estratégias e/ou ações foram conduzidas para ratificar seus compromissos com o autoritarismo. Os fatos ocorridos no fatídico domingo, 8 de janeiro de 2023, reforçam que tal pilar de sustentação dessa era de caos dá bem a conotação da opção de desrespeito às lutas por democracia, liberdade e igualdade.
Nessa linha de raciocínio e daí dar sentido ao tripé desse vetor ideológico, começo a descrever o segundo pilar, no contexto de uma expressão política mais consolidada no Brasil. Aqui me refiro à força que se exprime pelo legado da Teologia do Domínio. Por mais surpreendente que seja, o guru dessa corrente é um economista que se baseia no liberalismo atávico da escola austríaca: Gary North. Fortalecido pelos princípios do "Nacionalismo Cristão" que prosperou nos EUA (sobretudo, pela decepção com Jimmy Carter e um alinhamento com Ronald Reagan), o pensamento ganhou força política no Brasil, com a revisão de ideias evangélicas, absolutamente, equivocadas e preocupantes. Uma distorção da leitura bíblica é a base que explica os riscos políticos ainda ocultos para a maioria da sociedade.
De fato, o entendimento que os seguidores fazem de uma passagem bíblica do Antigo Testamento, Gênesis, Capítulo 1, veículos 27/28, revela que todos os eleitos por Deus devem ter domínio sobre tudo, inclusive, a gestão do Estado. E como diz e orienta North, o primeiro passo está no aproveitamento da condição laica do Estado, para seguir com a fidelização, no crescimento e na multiplicação. Depois, uma vez bem estabelecidos, segue-se com a plena disposição de dominar, no sentido de fazer com que a hora da libertação seja dada pela rendição do Estado e toda sociedade às crenças desses seguidores, entendidos como únicos eleitos de Deus. Noutras palavras, a concepção de um regime teocrático, de exceção e unidade religiosa, fica estabelecido. Com todos rigores distópicos de um conservadorismo decrépito. É bem o que pregam certas lideranças religiosas e políticos com e sem mandato. Perigo à vista.
O outro pilar que dou ênfase e que forma o tripé vem de um movimento da mais extrema-direita que se propaga justo nos EUA. A fonte Inspiradora é uma pseudo filosofia chamada de "Iluminismo Sombrio". O guru dessa nova linha de pensamento é um misto de cientista da computação e blogueiro, chamado Curtis Yarvin. O consultor quase anônimo de figuras do naipe do Presidente Trump, do Vice J.D.Vance, de Steve Bannon e de alguns bilionários amigos do poder. Sua "criação intelectual" é, simplesmente, um negacionismo esdrúxulo do trinômio do bom Iluminismo: democracia, liberdade e igualdade. Valores que não lhe servem para nada, por entender que o mundo não melhorou e apenas gerou sociedades niveladas por baixo.
Uma vez que esse trinômio jamais lhe entusiasmou, é preciso agir como um típico ativista autoritário e rever o erro histórico dessa inconsistência política chamada de democracia. Daí, reconhecer que o papel da ciência, do jornalismo e da cultura merece ser visto com o devido desprezo. Todo esse ódio escancarado está bem explicitado por Curtis, no que ele descreve como uma "catedral", que merece demolição. A ideia que passa é de uma igreja secular e estéril, composta por três agentes: a) professores/intelectuais de universidades, pregadores de ideias insustentáveis; b) jornalistas de veículos tradicionais, que se encarregam de difundi-las; e, c) fazedores de cultura/artistas, que se encarregam de popularizá-las. Ou seja, todos compõem uma espécie de "sacerdotes", para efeito dessa sua concepção de catedral.
Alguma semelhança com os fatos marcantes que inundaram nosso cotidiano? Como exercício mnemônico inicial, que tal lembrarmos do negacionismo científico da época da pandemia? E do combate sistemático ao jornalismo profissional, de gente preparada nas universidades, justo aqueles que, diplomados, juraram buscar a verdade da informação? Como enredo final, que tal destacarmos as perseguições declaradas e desrespeitosas dirigidas aos artistas, que nesse ideário costumam ser tratados como verdadeiros marginais?
Bem, diante dessa fixação ideológica, que nada tem a ver com democracia, liberdade e igualdade, o que se pode esperar do mundo, a partir dos que querem impor esse modo de pensar? A resposta é assustadora: implantar uma espécie de "feudalismo corporativo". Esta ideia consiste no fim do Estado e do embate político legítimo e saudável entre campos opostos. Nessa proposição, toda governança seria estabelecida em cima de uma gestão conduzida por regras idênticas às praticadas por um CEO de empresa. Na essência, uma espécie de "monarca" disfarçado, imbuído de poderes absolutistas. Um claro modelo político sem eleições e sem quaisquer compromissos com valores populares. O prefixo DEMO da velha Grécia representa um reles recurso linguístico de um passado que nem cabe mais em si.
O danado de tudo até aqui exposto é que grande parte da sociedade, até mesmo os embarcados no exotismo dessas propostas de fazerem valer os outsiders políticos com suas consequências, nem percebem os riscos que se escondem por trás de cada ideia-força: a da Teologia do Domínio e o do Iluminismo Sombrio.
Parece-me incontestável: a era do caos chegou e está posta sobre a mesa. Diante disso, a inércia da sociedade consciente contribui para não virá-la e mantê-la do jeito que está. A estabilidade e sustentação da era do caos parece não requerer polêmicas. É assim que o mundo gira. É assim que o tempo bate à porta e sabe passar de um jeito, que a gente nem entende como foi. Haja passividade.
Para consolo, quem (sobre)viver, talvez possa ter muito o que contar depois.
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