Ter, 23 de Dezembro

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opinião

Ainda ouvimos músicas como antigamente?

Muitos repetem que “não há mais músicas como antigamente”. Mas o que mudou mesmo é a forma como ouvimos música.

 Boa parte disso tem a ver com a ascensão do Spotify como principal meio de acesso às faixas e álbuns. É o que conta a jornalista de música Liz Pelly, no recém-lançado Mood Machine: The Rise of Spotify and the Costs of the Perfect Playlist.

O Spotify surgiu em meio ao declínio das vendas de CDs e à difusão do compartilhamento online de arquivos (via Napster, Kazaa e afins). Um aplicativo que oferecesse acesso instantâneo e ilimitado a milhões de faixas poderia se tornar um produto mais atraente do que a pirataria. A aposta deu certo.

Só que o Spotify não veio sozinho. Aliás, os concorrentes eram faixa-preta: o YouTube Music, com o seu catálogo que inclui o conteúdo do maior site de vídeos do mundo; e o Apple Music, com a integração aos Iphones e recursos especiais como karaokê.

Para fazer frente, o Spotify se especializou em curadoria das músicas disponíveis em sua plataforma. Mas não uma curadoria do conteúdo em si (como faz a Mubi no streaming de filmes), mas uma curadoria baseada na análise das preferências de cada usuário para recomendá-lo o que ouvir.

Assim, enquanto o usuário escuta músicas, essas informações são extraídas para que o seu gosto seja previsto pelo algoritmo. Daí em diante, a interface se organiza de acordo com as recomendações geradas, incluindo o recurso de “Feito para Você” e as playlists exclusivas para cada usuário.

A estratégia é clara: condicionar os usuários a fim de produzir comportamentos pré-selecionados pela própria plataforma. Como diz Liz Pelly: “Em determinado momento, um ouvinte pode muito bem passar a acreditar que o que o Spotify sugere é, de fato, o que ele gosta — não porque seja verdade, mas porque não vê ou sente outra opção”.
 
Os efeitos disso sobre o consumo musical são amplos. Pare para pensar: como descobríamos músicas até então? Rádio, TV a cabo, revistas, irmãos mais velhos descolados ou sessões de discos em supermercados e livrarias. Era uma aventura tremenda!

E o que o Spotify faz? Desencoraja essa exploração sonora por meio da padronização algorítmica. Só que o algoritmo não é bobo ou ingênuo, como aprendemos em documentários como “Dilema das Redes” e “Privacidade Hackeada” (ambos disponíveis no Netflix) sobre o funcionamento dos algoritmos.

Para garantir acesso aos milhões de músicas, a empresa fez acordo com as três gravadoras que dominam 70% do mercado musical. Foi assim que Sony, Universal e Warner assinaram contratos em que cederam os seus catálogos em troca de enormes vantagens comerciais, incluindo o destaque em playlists e conteúdos recomendados pelo algoritmo.

Quem mais sofre com tudo isso são os artistas e gravadoras independentes. Se não bastasse esvaziar os canais em que os seus fãs consumiam CDs e downloads (como o Bandcamp e o Soundcloud), a plataforma ainda hierarquiza o conteúdo e privilegia as grandes gravadoras nas recomendações feitas pelo algoritmo.

Mas e se o futuro for ainda mais ingrato para os músicos, até mesmo os famosos? Basta notar que muita gente não assina o Spotify para escutar as músicas de Lady Gaga ou Zeca Pagodinho, mas porque querem músicas para otimizar as atividades cotidianas, seja meditar, responder e-mails ou até dormir.

Daí por que as playlists são cada vez menos organizadas em gêneros como rock ou pop, cada qual com uma história acumulada de músicas e bandas inesquecíveis. Mais sucesso fazem as playlists temáticas que refletem sensações ou estados de espírito, como alegria, leveza e concentração e por aí vai.

A música então se torna útil e funcional (e não mais uma forma de arte), enquanto os músicos são reduzidos a meros criadores de conteúdo. Veja-se o caso do pianista sueco Johan Röhr, autor de músicas como “Piano Tranquilo” e “Alívio de Estresse”: muito embora seja um dos artistas mais famosos do mundo, ao menos de acordo com o número de plays no Spotify, ninguém sabe ao certo quem é. 

Hoje é dia de músicas para relaxar, bebê!
 

* Advogado, filósofo e presidente do Instituto Brasileiro de Finanças Digitais (IFD).

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Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail [email protected] e passam por uma curadoria antes da aprovação para publicação.

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