Cambrião
Dona Iraci (minha mãe) utilizava algumas palavras e expressões que ouviu durante a vida para educar suas crias. Provérbios, então, vinham aos montes (“boa romaria faz quem em sua casa está em paz”). Também utilizava palavras que ela criou ou ouviu e passou a usar, algumas de forma equivocada. Uma delas foi o “boca cacheada” que ela explicou dezenas de vezes e não consegui entender. Outra, cambrião, quando se referia a alguém que considerava cafajeste, de má índole, mau caráter, duas caras.
Fui procurar a origem da palavra. No dicionário alagoano, cambrião é definido como amante, amasio. No final do séc. XIX foi lançado em São Paulo “O Cabrião”, aportuguesamento de Cabrion, personagem do romance Os Mistérios de Paris (1842). O nome do jornal fazia referência à pessoa que importuna ou aborrece sem cessar. As duas definições se afastam da definição do cambrião de Dona Iraci.
Vou parar por aqui, entendendo que cambrião é o indivíduo com as características listadas no primeiro parágrafo. Para exemplificar, indico um, hors concours, o médico Marcel André Henri Félix Petiot, suspeito da morte de 60 pessoas (23 restos mortais foram encontrados na sua casa). A sua atividade mais lucrativa ocorreu durante a 2ª Guerra Mundial. Simulava dispor de meios para retirar da França pessoas perseguidas pelo nazismo, vendendo passagens falsas para a América do Sul pelo preço de 25 mil francos por pessoa.
De posse da grana, aplicava uma vacina contra doenças “exigida pelas autoridades”. A vacina continha cianeto. Jogava dos dois lados (judeus e nazistas). Em fevereiro de 1944, foi condenado e decapitado.
Na semana que passou, ao ver o filme sobre o médico (1), veio à minha cabeça o episódio brasileiro do desconto nas aposentadorias, em montante inicialmente estimado em R$ 9 bi. Não acredito que cambriões tiveram a coragem de meter a mão nas remunerações dos aposentados. Como se sabe, o salário-mínimo brasileiro (que é o valor mínimo da aposentadoria, pouco mais US$ 200) deve cobrir as despesas com alimentação, saúde, higiene, moradia, transporte, vestuário e lazer.
O que se recebe não dá para cobrir metade dos itens, a não ser que exista ajuda de fora. Pois bem, em cima de quem ganha quase nada afanaram de 3% a 5% mensais.
Ainda não sei se estou na lista dos lesados. Se estou, quero receber, logo, à vista, com juros, multa, correção monetária e mais um valor, a qualquer título, para compensar o susto e para voltar ao meu bolso e de todos os afanados os valores que foram indevidamente e ilegalmente surrupiados.
Simultaneamente, os aposentados devem voltar a receber mensalmente extratos mensais dos valores creditados. Por último, a pena para os cambriões: cumpra-se a Lei, no seu rigor máximo, sem atenuantes.
(1) Docteur Petiot, dirigido Por Christian de Chalonge, 1990.
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