Dia da criação
Saí de casa pontualmente. Às nove horas. Meia hora para chegar ao destino. Uma manhã claríssima. Pintada de azul. E um sol tropicalmente dourado. Poderia ser uma tela fluvial de Monet. Ou um trigal de Van Gogh. Mas, logo adiante, a paisagem abrasileirou-se: um jardim de Burle Marx, um feminino escultural de Abelardo da Hora, o perfil gigantesco em mural de Naná Vasconcelos.
Confortei-me. Nas cores nacionais. Não ando de carro sem som. Tem na Guararapes um parceiro musical que grava pendrives. Com tudo quanto é de músicas minhas preferidas. Não assumi os canais que oferecem músicas. No atacado. A mim, não servem. Quero no varejo. Minha antologia. Porque são músicas que fazem parte de minha história. De um tempo que comprei no Rio, por exemplo. Estão na minha pele. No meu coração.
Por outro lado, são uma moldura do Recife. Porque incorporadas ao meu cotidiano. O Recife fluvial quando saio de casa e dou bom dia ao Capibaribe. O Recife barroco, do bairro de São José, quando passo e recordo a figura dos mascates. O Recife cívico da Faculdade de Direito, sede de resistência, Demócrito, filial da democracia, Egídio. Em cujas escadarias tive a primeira grande emoção de vida adulta. O Recife vestido de literatura, Albert Camuseano, cativo da verdade, a quem passei a admirar pela mescla de coragem e lirismo. E que, aqui chegando, disse: "O Recife é a Florença tropical".
O fato é que me dirigi à reunião ordinária do Conselho Estadual de Proteção ao Patrimônio Cultural. É um colegiado propositivo, técnico e deliberativo. Que promove, entre sociedade e governo, a gestão compartilhada do patrimônio cultural. Com apoio técnico da Fundarpe, o Conselho delibera sobre registro e tombamento de bens materiais e imateriais. Neste momento, o Conselho trabalha proposta de registro de bem cultural imaterial: a Missa do Vaqueiro. Realizada, em Serrita, em memória de Raimundo Jacó. Desde 1971.
O Conselho também se dedica, hoje, ao estudo para tombar as trincheiras das mulheres heroínas da batalha de Tejucupapo. Esta é iniciativa que preenche lacuna na valorização da história dos feitos de Pernambuco. Porque a batalha de Tabocas (1646) é considerada bem cultural imaterial. As batalhas de Guararapes (1648 e 49) são consideradas bens culturais imateriais. E Tejucupapo? Constitui episódio vitorioso iluminado pela coragem da mulher pernambucana. Que expulsou o invasor com água fervente e obstinação.
Encerrada a reunião, deixei o prédio do Conselho, a casa de Oliveira Lima. Eu respirava cultura. No senso mais amplo. No sentido dos fazeres com inteligência. E lembrei como o fazer inteligente está sendo pisoteado por Trump e por Putin. Duas nações cujos povos edificaram uma cultura notável. De um lado, Wynton Marsalis, Jackson Polock e Ernest Hemingway. De outro lado, Rostropovitch, Boris Pasternak e Rudolf Nureyev.
No caminho para casa, pensei quão bela é a vida. E quanto de esforço devíamos aplicar no zelo com as pessoas e as coisas. Porque, pela beleza dos rios, das rosas, cada dia é o dia da criação. Como disse Vinicius de Moraes: "Hoje é sábado, amanhã é domingo. A vida vem em ondas, como o mar. Não há nada como o tempo para passar. Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal".
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