É preciso chamar o feito à ordem
Felipe Martins tem 35 anos, é graduado em Relações Internacionais, e foi assessor especial da presidência da república no governo anterior.
Ele responde no STF a um inquérito, por tentativa de golpe de estado, cujo relator não foi sorteado pelo sistema de distribuição processual aleatória, ao argumento de que teria conexão com outros procedimentos antecedentes...
O procedimento (e os inquéritos que o antecederam), jamais deveria correr na suprema corte, que não pode fazer as vezes de uma delegacia de polícia, e, também, porque o investigado não tem foro por prerrogativa de função.
Felipe Martins foi cautelarmente preso, por alegado risco de fugir do país, a pretexto de uma viagem internacional que, comprovadamente, não aconteceu.
Ficou preso, por seis longos meses, sem denúncia e sem processo, contra pareceres do Ministério Público. Foi, finalmente, solto, mas terá que usar tornozeleira eletrônica, não poderá acessar redes sociais, viajar, nem falar com outros investigados, dentre outras medidas restritivas, impostas sem a demonstração de sua utilidade ou necessidade.
Felipe Matins não é o único.
Débora Rodrigues é cabeleireira, mãe de duas crianças, de 6 e 9 anos de idade. Está presa, preventivamente, desde março de 2023, também por ordem do STF, acusada de tentativa de golpe de estado, por conta dos atos de depredação praticados no 08 de janeiro. O “crime” dela, pelo que se sabe, foi escrever - em uma estátua denominada “A justiça” - a frase “perdeu mané”.
Ela, assim como Felipe Martins, não tem prerrogativa de foro. Jamais poderia ser investigada, processada ou julgada pelo STF, muito menos por um ato tão banal, que, no máximo, seria passível de ser enquadrado como dano ao patrimônio público.
Mas não é só! Tem muito mais gente sendo investigada irregularmente, inclusive por fatos ocorridos fora do Brasil, outros estão proibidos de falar em redes sociais, de relacionar-se com quem bem quiserem, com contas bancárias bloqueadas, com passaportes cancelados, por “crimes” de opinião e de fake news (que não existem no mundo jurídico, posto que não são tipificadas criminalmente), tudo no âmbito de processos e procedimentos que o STF, claramente, não tem competência para dirigir.
Também há muitas outras pessoas presas, outras já condenadas, por crimes impossíveis (onde já se viu alguém dar golpe de estado sem armas?), algumas a mais de dezessete anos de cadeia, que, perante a Corte, igualmente, não poderiam ser investigadas, processadas e nem julgadas.
Não se tratam, essas decisões do STF, de meros erros judicias ou de fatos isolados. O caso é de disfunção institucional, pouco importa se são boas (ou não) as intenções de quem as proferiu.
A situação a que todos assistimos gera perplexidade, preocupação e temor a quem verdadeiramente vive e ama o Direito, pois nada pode ser mais impiedoso, ilegal e antidemocrático do que medidas e condenações criminais proferidas por tribunal incompetente, com violação ao princípio do juiz natural, ofensa ao sistema acusatório, estabelecidas irrazoável e desproporcionalmente, muitas vezes sob sigilo, e sem base legal alguma.
Pessoas comuns estão sofrendo, famílias estão sendo destruídas, vidas estão “paralisadas”, direitos fundamentais estão sendo violados, sem que, pouco, ou quase nada, possam elas (e os seus advogados) fazer.
Acham que estou exagerando?
Então respondam como alguém pode se defender, e ter um julgamento justo, perante um tribunal incompetente, que acusa, investiga, julga e se põe no papel de vítima, sem sequer observar plenamente o devido processo legal, o pleno acesso dos acusados ao processo e as leis penais vigentes?
A quem recorrer, quando a carga investigatória, acusatória e condenatória é imposta, com mão pesada, inclementemente, pelo Ministro Relator dos inquéritos e das ações penais, com o apoio, quase incondicional, da maioria dos membros da mais alta Corte do país e, não poucas vezes, com o parecer favorável do Procurador Geral da República?
É desalentador ver vozes, que poderiam e deveriam falar (e resistir), sejam elas da advocacia, da academia, do Ministério Público, do próprio Tribunal, da imprensa e do meio político, apoiarem esse estado de coisas, ou continuarem caladas e insensíveis, como se tudo estivesse dentro da normalidade e não houvesse gente sofrendo dessas dores no corpo e na alma.
O quadro é verdadeiramente estarrecedor.
Desse modo, não importa se somos de direita, esquerda ou de centro. Indignar-se, ante a ilegalidade oficial e a injustiça institucional, é uma questão humanitária e de solidariedade, é um dever de cidadania em prol do sistema de justiça e do país, é uma questão “suprapartidária”.
O Supremo Tribunal Federal é essencial ao povo e ao país. Por essa razão, a sua atuação (e a dos seus integrantes) deve estar submetida apenas à Constituição Federal, nunca (nunca mesmo), à vontade, visão de mundo ou escolhas de seus membros (ou de quem quer que seja), pouco importam os motivos que se aleguem para tanto..
A escalada de disfunção institucional do STF começou em março de 2019, com o inquérito das Fake News. Desde então, vem se expandindo, sob outros pretextos, em novos procedimentos, onde o “erro” inicialmente cometido, ao invés de ser corrigido, vem se agravando, a exemplo de recente reportagem do jornal Folha de São Paulo, que revelou mensagens e áudios, para lá de comprometedores, atribuídos a assessores diretos e ao próprio Ministro Alexandre de Moraes.
Para o bem de todos, principalmente do Supremo Tribunal Federal, isso precisa parar.
* Sócio do GCTMA Advogados, procurador do Estado de Pernambuco aposentado, conselheiro de administração/IBGC.
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