Sáb, 20 de Dezembro

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Opinião

O duplipensar do século 21

“Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão [...] um poder cínico e cruel”. Essa frase foi tomada por empréstimo à sinopse do famoso livro de George Orwell, 1984 (Companhia das Letras, 2009), uma crítica ao totalitarismo de qualquer coloração. Obra publicada em 1949, logo após a Segunda Guerra Mundial, nos serve como chicote a bater em “Franciscos e Chicos”. A bater tanto nos defensores do totalitarismo de esquerda, como os de direita. Nos impõe a reflexão sobre os excessos delirantes, de qualquer forma de poder incontestado, seja aonde for, seja a cor que for, seja o poder que for. Poder incontestado nada mais é que afrontar a democracia. E esse enfrentamento se percebe em nossos dias da América a Nicarágua, da Itália a Venezuela, da Polônia a Rússia, do Brasil a China. A história do romance, uma distopia que se encontra com a realidade nos tempos modernos, revela o autoritarismo do grande líder O’Brien na condução do país chamado Oceânia. Com inquieta constatação, líderes autoritários é o que não nos falta neste mundo do século 21. Ao dialogar com o outro personagem, Winston Smith, o cidadão que sofre na pele as agruras do poder, o Grande Irmão revela sem constrangimento: “não estamos interessados no poder dos outros; só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”. O’Brien já estava seguro de haver destruído toda forma de dissenso e todos que a defendessem, assumindo um patamar filosófico superior de poder. Até a linguagem de Oceânia fugia de seus propósitos naturais de comunicar ideias para transformar-se em instrumento de revisão histórica. A Novafala, como ficou conhecida a linguagem de Oceânia, é contraditória, por isso mesma eficaz. Imposta pelo partido para renomear as coisas, as instituições, os fatos e o próprio mundo, manipula a realidade em um ir e vir desconcertante. A técnica do duplipensar, definida como o poder de sustentar duas crenças contraditórias simultaneamente, aceitando as duas, desgovernava a razão de cada irmão. Invasão dos poderes lá em Oceânia poderia ser denominada como marcha democrática, a partir de uma ordem do dia do Grande Irmão, e então reescrita pelos revisores da história em suas estações de trabalho, e o impedimento de autoridades, um outro exemplo, tão somente como golpe. O ministério da guerra era conhecido como ministério da paz, o ministério da justiça, como ministério do amor, o ministério da comunicação social, como ministério da verdade. Lembrei-me de um texto da Hanna Arendt na qual a pensadora desvelava o seu sentimento sobre verdade e política, que poderia estar perfeitamente no imaginário de George Orwell ao escrever o livro. Afirmava Hanna que as possibilidades de a verdade factual sobreviver ao assédio do poder eram de fato escassas. Quando aterrissamos dessa viagem ao espírito filosófico da verdade e da política, e colocamos os pés no solo firme da realidade que vivemos no mundo de hoje, descobrimos que em nosso país há Franciscos e Chicos a serem combatidos. Há as verdades factuais e as especulativas com as quais temos que conviver e sobreviver. Há as mentiras organizadas e as que não merecem atenção. A verdade factual não é mais prevalente do que a opinião sem base. Essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam apenas opiniões acham relativamente fácil desacreditar a verdade factual como simplesmente uma outra opinião. Atitude que pode mesmo ser genuína, mas não edifica as relações na sociedade. O ambiente cinzento de 1984 parece se reencarnar na década de 2010, tempos sombrios nos quais sistemas se digladiam rompendo com os conceitos contidos nas ciências sociais – direita versus esquerda, liberal versus conservador, democracia versus autoritarismo - e na manipulação psicológica das redes – nas quais o indivíduo já está convencido antes de escutar a nova argumentação – assumem prevalência nas relações humanas. Estejamos atentos para não nos transformarmos em uma Oceânia e, portanto, não sermos vítimas de um Grande Irmão. Eles existem e são perigosos. Paz e bem!

*General de Divisão da Reserva

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