Uma cultura sujeita ao fiasco da educação: por que resistir e não se entregar?
Por força do destino profissional, tenho tratado a produção cultural pelo lado meritório do seu impacto econômico. Há pelo menos duas décadas, que esse meu esforço parece soar muitas vezes num eco solitário, tamanha é a incompreensão de grande parte da sociedade, em enxergar a cultura como importante referência econômica. Justamente, para efeito de um desenvolvimento que se espera sustentável. Uma situação que me parece reeditar aquelas menções bíblicas de pregação no deserto. Por isso, cheguei a uma dura conclusão, de que grande parte daquilo que vejo como uma reação fria, tem muita sintonia com a fragilidade do modelo educacional que se estabeleceu e ainda prevalece no Brasil.
De que modo justifico essa conclusão tão incisiva? É porque meus poucos mais de 30 anos, aqui postos pelo lado de produtor cultural, ainda não "entrou na estação", daquilo que aqui chamo de uma política educacional efetiva. Aqui absorvido pela sensivel referência de uma música de Moraes Moreira, aquela sintonia fina com a cultura, "no rádio do meu coração", não tem sido devidamente tocada. Tal e qual queria Moraes, tocar os corações por meio de uma sintonia fina entre partes.
De fato, diante de tantos problemas complexos, o modelo educacional tem um viés clássico, de apenas fomentar o conhecimento e gerar um saber, no objeto de se ter uma profissão. Longe de se querer retirar o mérito desse compromisso, há de se mostrar uma clara incompletude na formação cidadã.
A missão da educação na transmissão do conhecimento e formação do saber precisa incorporar uma amplitude de valor, que possa extrapolar esse ponto. Que consiga ir além da convenção tecnicista de só produzir diplomas para cidadãos. Seja para ocupar seus nichos de mercados, com boas ou más qualificações (fator trabalho). Seja para investir noutros nichos de mercado, com padrões não menos diferenciados (fator capital). O resultado disso costuma até gerar bons profissionais, porém despreparados culturalmente, porque o modelo educacional não soube como operar a fruição artística. E em sintonia com as ciências humanas, na intenção de se contribuir para o entendimento de cada cidadão em si e seu real papel na sociedade.
Penso que essa negligência, com o descarte do que representa a cultura, seja mais um fracasso a ser contabilizado pela educação no Brasil. Tantos graduados como médicos, engenheiros e outras profissões, que não sabem e nem sentem a essência e o valor do que se expressa, através dos movimentos artístico-culturais. As livres expressões geradas por meio de músicas, livros, peças, filmes e outras tantas artes, infelizmente, passa ao largo de uma parcela significativa da sociedade. E, com esse quadro, não há nem como avançar na tese da humanização das relações socioeconômicas. Criou-se daí um vácuo, que só fragiliza tudo aquilo que se projeta, em termos de sustentabilidade, considerado o padrão de desenvolvimento esperado, para um mundo menos injusto e mais civilizado.
Nessa perspectiva, preciso aqui ir além do trivial, simplesmente, por motivos ou exemplos outros que também se apresentam em cena. Isso porque já não se vêem, na proporção da nossa diversidade cultural, tantos empresários com a mesma sensibilidade dos velhos mecenas. E algo bem pior: líderes políticos que nunca são comprometidos e até vistos em manifestações culturais. A situação chegou ao nível de um obscurantismo estúpido quando, recentemente, assistiu-se ao ato contínuo de um parlamentar interrogar o Ministro da Fazenda, por ele ser um apreciador das artes. E que tal um governador conterrâneo, que não sabe quem é Adélia Prado, recém escolhida para receber o Prêmio Camões de Literatura? Um contexto inacreditável da baixa consciência cidadã que, infelizmente, desconhece sobre a relevância da identidade cultural para qualquer enredo de nação.
A constatação que se extrai de todo esse contexto leva em conta um fato lamentável. É que uma parte substancial da sociedade, não percebe o quanto é representativo o valor simbólico das atividades culturais, por mais que estas sejam vistas como o DNA dos processos civilizatórios. As atividades culturais não devem ser encaradas apenas como mero meios de entretenimento. Nem, muito menos, serem vistas de um modo isolado, como um adorno ou uma estética que mexe com a sensibilidade dos que a consideram. Se inseridas de forma plena, numa sintonia com o modelo educacional, há como reconhecê-las numa perspectiva propulsora do significado que expressa o ser e o agir como atos humanos. Afinal, suas distintas maneiras de fazerem valer a livre expressão aguçam a capacidade criativa e o poder de discernimento de cada um dos cidadãos. Aliás, são também exercícios naturais de soberania democrática.
Pois bem, para emoldurar esse divórcio entre o modelo educacional e o conjunto da obra artístico-cultural basta agora mirar para a baixa adesão cultural dos brasileiros. Os números são cruéis, pois revelam uma espécie de distopia, quando não se alcançam quantitativos aceitáveis de leitores, espectadores ou público em geral. Por maiores que sejam as oportunidades criadas, através das inovações técnicas adotadas para cada tipo de arte (negacionismos à parte), o fato concreto é um distanciamento considerável, com relação ao que poderia ser tratado como um desejado consumo cultural. Mesmo na falta de um público bem maior, a economia do setor até que gera suas oportunidades de empregos e rendas. Entretanto, todo crescimento conquistado passa uma sensação de que o mesmo se efetiva "sem alma". Este é o mais puro retrato da resistência dos que fazem a arte e cultura se moverem. São guerreiros que nunca se entregam, por maiores que sejam as adversidades encontradas.
Não poderia deixar de concluir, sem que um bom exemplo pudesse ilustrar, mesmo que por outro ângulo de visão, essa situação de brutal fragilidade. E aqui me reporto a uma belíssima e emocionante matéria jornalística sobre um monólogo, creio que já em cartaz. Nessa peça, a história é narrada por quem a vivenciou, dada a plenitude dos seus valorosos 70 anos de carreira artística. Na sua bagagem, toda experiência de quem já fez mais de uma centena de trabalhos na TV, pouco mais de 80 peças para o teatro e algo acima de 70 filmes. Refiro-me ao monólogo conduzido pelo extraordinário ator Othon Bastos. Claro que (ainda) não pude assisti-lo, mas a matéria televisiva por si só, já me garantiu o conteúdo que precisava para "amarrar" a argumentação, que aqui expus.
"Não me Entrego, Não", é uma citação do cangaceiro Corisco, numa das cenas mais marcantes do premiado "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Ao dar também nome ao monólogo, claro que a intenção é trazer à tona não apenas a longevidade de uma carreira artística vitoriosa e reconhecida. A proposta ainda expressa o sentido da resistência, que tão bem carrega artistas do naipe de Othon e, por extensão todos chamados "fazedores de cultura". Neste particular do ator, que também cabe na extração do nosso caldo cultural, a convicção de que personagens e artistas/realizadores se misturam, pois assim servem para lutar contra tudo que esteja no convencional, "dentro da caixinha".
Obras, assim, com forças inspiradoras, que são capazes de exporem os diversos artistas num só (como no caso de Othon), não cabem apenas como uma referência em si. A questão maior é saber, de antemão, que o público que poderia prestigiá-lo, por maior que esteja na plateia, não consegue representar o universo esperado. Talvez, muitos dos espectadores, sequer sabem do valor artístico que está presente por trás de todo um trabalho. De Othon a tantos outros. De "O Pagador de Promessas" a "Deus e o Diabo", protagonizados pelo próprio ator. O fato é que a dimensão desse desconhecimento também está justificada por uma educação recebida, que não foi a suficiente para que o conhecimento adquirido atuasse no sentido dos valores culturais.
Mesmo que diante desse comportamento social dissimulado, que disfarça um obscurantismo renitente, mantenho minha velha utopia realista. Creio que ainda há como se alterar o rumo, desde que cada interessado se espelhe no Corisco interpretado por Othon, siga na luta e, por conseguinte, reaja como se mostra o título do seu monólogo: "Não me Entrego, Não".
Particularmente, estou nessa pegada por quase três décadas. E não me entreguei.
*Economista, produtor cultural e colunista da FolhaPE