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FENÔMENO RARO

Quimerismo natural: entenda condição de brasileira que carrega DNA do irmão gêmeo no próprio sangue

Caso raro de quimerismo espontâneo surpreendeu ao manter fertilidade e saúde de Ana Paula Martins intactas

Quimerismo natural: entenda condição de brasileira que carrega DNA do irmão gêmeo no próprio sangueQuimerismo natural: entenda condição de brasileira que carrega DNA do irmão gêmeo no próprio sangue - Foto: Freepik

Uma brasileira identificada como Ana Paula Martins, de 35 anos, descobriu que carrega células sanguíneas do irmão gêmeo, um fenômeno raríssimo conhecido como quimerismo espontâneo ou natural. A descoberta, que foi divulgada nesta semana pela BBC News Brasil, aconteceu no início de 2022, e o caso surpreendeu pesquisadores pelo fato da fertilidade e saúde da mulher terem se mantido intactas, mesmo com a condição.

Na época, Ana Paula havia realizado um exame genético chamado cariótipo, feito depois de um aborto espontâneo. O resultado surpreendeu: o sangue apresentava cromossomos XY, apesar do restante do corpo manter cariótipo XX e fenótipo feminino, incluindo útero e ovários funcionais.

— O laboratório entrou em contato comigo. Eu sou da área da saúde. Ai eu vi [o resultado] e isso me causou um mega impacto. Eu falei: "não, tem alguma coisa errada" — relatou Ana Paula à BBC.

A presença de XY em mulheres normalmente indica condições genéticas raras, muitas vezes associadas à infertilidade. Mas Ana Paula contrariava essa expectativa: seus ovários eram saudáveis e ela já havia engravidado anteriormente.

A explicação veio ao comparar seu DNA com o do irmão gêmeo.

O diagnóstico foi quimerismo, uma condição rara em que uma pessoa possui dois conjuntos de DNA distintos. Diferente do quimerismo induzido, comum após transplantes de medula óssea, o caso de Ana Paula ocorreu naturalmente durante a gestação.

Até o momento, Ana Paula é a primeira mulher quimérica espontânea com gestação bem-sucedida documentada no mundo. O caso dela foi investigado com a participação do Fleury, do Hospital Israelita Albert Einstein e do Hospital das Clínicas da USP, sob supervisão do ginecologista Gustavo Maciel e do geneticista Caio Robledo.

Estudos mostram que, em gestações gemelares, vasos sanguíneos podem se conectar, permitindo que células-tronco do irmão migrem para o organismo da irmã. No sangue de Ana Paula, essas células permaneceram e passaram a produzir glóbulos brancos XY, enquanto o DNA de pele e mucosa oral continuou XX.

— Na pele, no DNA da boca, no DNA da pele, ela é uma pessoa. O sangue dela, os glóbulos brancos dela, ela é o irmão, exatamente igual ao irmão — explicou Maciel.

Apesar do sangue XY, a fertilidade de Ana Paula não foi afetada. Ela engravidou durante a pesquisa, inclusive, e teve um filho saudável, cujo DNA contém apenas a combinação materna XX e paterna, sem participação do irmão gêmeo. Isso ocorre porque as células sanguíneas não interferem nos óvulos produzidos pelos ovários XX.

O caso de quimerismo observado em Ana Paula, segundo os pesquisadores, é diferente dos já conhecidos.

— A gente vai lá, faz um tratamento que destrói a medula óssea daquele paciente e leva as células de medula óssea de um outro paciente que vão repovoar a medula, e isso gera uma quimera para tratamento. Esse fenômeno a gente conhece. Agora, quimera espontânea é um fato muito raro (...) Ela tem um pouquinho do irmão circulando nela — afirmou Robledo.

A condição da brasileira demonstra a capacidade do corpo humano de tolerar células geneticamente diferentes sem rejeição, e abre novas perspectivas para pesquisas sobre imunidade, transplantes e reprodução.

— Apesar deles terem uma certa incompatibilidade genética, ela vive bem com o material dele. Esse caso dela diz para a gente que pode existir algumas situações em que você tem uma tolerância imunológica que pode abrir perspectivas de investigação para a gente entender mais a questão dos transplantes, por exemplo — disse Maciel.

O que é quimerismo?
O quimerismo é gerado pela presença de células de dois ou mais zigotos (célula formada pela fusão do espermatozoide com o óvulo) no mesmo indivíduo, como se existissem duas pessoas dentro de um mesmo corpo. Estima-se que existam aproximadamente apenas 40 casos registrados em humanos.

Apesar de ser uma condição genética, o quimerismo não é hereditário, ou seja, embora se relacione com o DNA ela não é necessariamente transmitida de pais para seus descendentes.

O primeiro caso documentado foi publicado no British Medical Journal, em 1953. Numa campanha de doação de sangue, uma mulher de 25 anos descobriu que seu sangue era AO (61% de células do grupo O e 39% de células do grupo A), uma característica então desconhecida pela ciência.

Uma portadora célebre da síndrome é a cantora americana Taylor Muhl, que em 2018 revelou ao público o diagnóstico de quimerismo e explicou características como sua barriga ser marcada por duas tonalidades diferentes.

Na adolescência, ela sofreu com problemas imunológicos, até que um médico descobriu que ela teria a síndrome, por ter, no útero da mãe, incorporado as células do que seria sua irmã. Geneticamente, era como se fosse gêmea de si mesma, o que explicaria as várias alergias e outros problemas de saúde, pelas constantes tentativas de seu corpo em "se livrar" do que restou da irmã.

Outros sintomas aparentes podem ser olhos com cores diferentes, texturas e cores distintas no cabelo e a presença de órgãos genitais com características masculinas e femininas. Mas, em parte dos casos, os seus portadores podem passar a vida sem saber da condição. O nome da síndrome foi retirado da mitologia grega, da criatura mítica caracterizada por uma aparência híbrida de dois ou mais animais.

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