Sob o olhar de Lula, Rússia desfila seu poderio militar
Putin usa tradicional marcha do Dia da Vitória sobre nazismo como arma de propaganda para mostrar que não está isolado
Leia também
• Macron, Merz, Starmer e Tusk pressionam Rússia antes de visita a Kiev
• Brasil e Rússia discutem aumento das relações na área de energia
• Estátua do ditador soviético Joseph Stalin é inaugurada em área ucraniana controlada pela Rússia
Num espetáculo projetado para impressionar, a Rússia lembrou ontem os 80 anos da vitória soviética sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial com a tradicional parada militar na Praça Vermelha, tendo um pé no passado e outro no conflito atual com a Ucrânia.
O evento, em que durante uma hora e meia milhares de soldados, tanques e mísseis desfilaram no coração da capital russa, foi sobretudo um espetáculo que o Kremlin buscou usar para demonstrar que não está isolado, depois de mais de três anos sob pressão do Ocidente.
O governo russo deixou clara a importância de receber líderes estrangeiros para participar da celebração. Entre eles estava o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que acompanhou a imponente parada militar ao lado da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja.
Às 10h em ponto, soaram os sinos das torres do Kremlin, sede do poder russo, dando início à celebração. Entre os veículos de mídia de vários países no local, O GLOBO foi contemplado por sorteio como um dos dois do Brasil presentes na cerimônia.
No centro da tribuna, o presidente russo, Vladimir Putin, tomou a palavra para lembrar o sacrifício da luta contra o nazismo, que custou 27 milhões de vidas na antiga União Soviética.
Como “herdeiros dos vencedores”, o país celebra o feriado 9 de maio como o mais importante do país “para cada família, para cada um de nós”, disse Putin. No elo entre aquele conflito e o atual, ele rejeitou “distorções” dos eventos históricos e reiterou a disposição de manter a ofensiva na Ucrânia até obter a vitória.
— A verdade e a justiça estão do nosso lado. Todo o país, a sociedade e o povo apoiam os participantes da operação militar especial — disse Putin, usando o termo pelo qual a guerra é caracterizada oficialmente na Rússia. — Estamos orgulhosos de sua coragem e determinação, da força de espírito que sempre nos trouxe apenas vitória.
Nas tribunas, o clima era de confraternização entre veteranos do Exército e militares da ativa, diplomatas, empresários e celebridades. Na lista dos convidados estrangeiros, não havia só gente de governos, mas também artistas que apoiam publicamente o presidente Putin. Dois deles chamaram especial atenção por serem do maior rival da Rússia, os Estados Unidos: o ator de ação Steven Seagal e o diretor de ação Oliver Stone.
Havia até um americano exilado em Moscou, Chad Chower, procurado pelo FBI desde 2006. Nos EUA, a Segunda Guerra ficou para a História, comparou, mas na Rússia “é parte do presente”.
Entre os líderes estrangeiros, o lugar de honra na tribuna foi claramente reservado ao presidente da China, Xi Jinping. Sentados lado a lado, Putin e Xi passaram o evento trocando comentários, enquanto um telão na praça volta e meia exibia os dois para o público. As imagens serviram para mostrar ao mundo que continua mais forte do que nunca a “parceria sem limites” entre Moscou e Pequim, que tornou-se mais sólida desde a invasão russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022.
Fora da tribuna de honra, também havia um desfile de convidados de países amigos. O embaixador do Zimbábue em Pequim, Gray Marongwe, disse ao GLOBO que a participação decisiva da União Soviética para livrar o mundo do nazismo justificava plenamente sua presença no evento. Sobre o conflito atualmente travado pela Rússia, ele manifestou apoio a Moscou e repetiu a narrativa do Kremlin de que é preciso “desnazificar” a Ucrânia.
Foi uma audiência seleta que acompanhou o desfile na Praça Vermelha, formada principalmente pela alta elite da Rússia. Com as ruas centrais da cidade fechadas, restou a quem não tinha convite assistir de longe à passagem de tanques e mísseis rumo ao evento. Celebridades locais presentes refletiam o clima de exaltação patriótica que virou regra nos últimos anos no país. Um deles era o apresentador de TV ultranacionalista Vladimir Soloviev, que foi ao evento vestido com uma farda militar, arrancando aplausos.
Perto de onde Soloviev estava, quatro oficiais do Exército da Coreia do Norte com a farda coberta de medalhas reluzentes eram cercados de curiosos em busca de selfies. Impassíveis, eles mal se mexiam, mas a parceria entre os dois países vai além do espetáculo. No fim do mês passado, a Rússia finalmente confirmou que há soldados norte-coreanos lutando do seu lado na Ucrânia. No asfalto, um dos momentos mais aplaudidos foi a passagem das 13 unidades estrangeiras que participaram do desfile, entre elas a da China.
Muito claramente, a memória da guerra vencida há 80 anos atrás se misturava com a campanha atual. Soldados jovens comentavam que em breve teriam que voltar para a linha de frente na Ucrânia. Enquanto isso, os mais veteranos reforçavam a necessidade de reconhecer as glórias do passado, mesmo aquelas cercadas de controvérsias. Vestindo seu antigo uniforme de gala, Vladimir Mikhaylov, general da reserva da Força Aérea russa, disse que o país precisa recuperar a memória de Josef Stalin, ditador soviético na época da guerra, pela importância que ele teve na vitória contra os nazistas.
Acusado de atrocidades contra o próprio povo soviético, Stalin foi denunciado por seus crimes após morrer, em 1953. Mas um gradual processo de reabilitação está em curso com o apoio de Putin, que quer rebatizar a cidade de Volgogrado como Stalingrado, nome que ela tinha até 1961. Mikhaylov e outros veteranos esperam que seja só o começo.
— Infelizmente, os jovens não sabem, mas Stalin foi fundamental para preparar o país para a vitória, diz o general. — Precisamos recuperar essa memória.

