Seg, 22 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
Violência contra mulher

Da hierarquia masculina ao feminicídio: como a "machosfera" sustenta a violência contra mulheres

Especialistas defendem que enfrentar a violência de gênero exige tirar os homens da posição de espectadores e colocá-los como agentes ativos no debate feminista

Dados de UNODC e ONU Mulheres revelam que, apenas em 2024, 83 mil mulheres e meninas foram mortas intencionalmente no BrasilDados de UNODC e ONU Mulheres revelam que, apenas em 2024, 83 mil mulheres e meninas foram mortas intencionalmente no Brasil - Foto: Freepik

"Bros before hos" ou, em tradução adaptada ao português: "amigos antes das mulheres". A frase é um ditado popular norte-americano utilizado com frequência entre homens jovens para representar o vínculo de confiança existente dentro das relações de amizades masculinas.

Para quem usa, funciona como um mantra, um tipo de código de conduta que estabelece uma hierarquia entre as relações na vida de um homem, colocando seus amigos acima de qualquer outra mulher. 

A lógica é simples: priorizar o bem estar do colega e não deixar que nenhuma mulher - seja ela um interesse romântico ou não - atrapalhe ou cause problemas na amizade.

Apesar de parecer coisa de adolescente, ou consequência tardia da fase em que os meninos se afastam das meninas para criarem seus “clubes do bolinha”, a frase representa um dos principais dogmas do movimento "masculinista", também conhecido como "machosfera".

Para a Cientista Social, Liana Lewis, o grupo tende a captar com maior facilidade homens jovens, marcados por um forte sentimento de desgosto contra os signos femininos.

“Essas narrativas funcionam como um amparo para esses homens, que se sentem em uma posição inferior, enquanto as mulheres atravessam um processo histórico de empoderamento, com maior inserção no sistema educacional e uma luta cada vez mais intensa por espaço no mercado de trabalho e por autonomia”, destaca.

Para eles, o feminismo significa um retrocesso nos próprios interesses.

As pautas masculinistas operam a partir de narrativas que minimizam ou negam a existência da violência contra mulheres, questionam políticas de equidade de gênero e reforçam estereótipos abusivos de masculinidade.

Incentivando um cenário onde a mulher deve ser considerada inferior e se posicionar como submissa ao homem.

“Essa ideologia reposiciona o homem nesse lugar simbólico de superioridade, atuando como uma forma de conforto para uma comunidade que se sente, ainda que não fisicamente, agredida pela percepção distorcida de perda de um lugar historicamente associado ao privilégio e ao poder”, reforça Lewis.

Se o destrinchar da questão ainda não deixa óbvio, aqui vai uma explicação mais direta: a lógica masculinista é o ponto de partida da violência contra à mulher e termina, na grande maioria das vezes, em feminicídio. No centro do problema estão os homens.

“Os discursos masculinistas tendem a atrair homens jovens, marcados por isolamento social e dificuldades de socialização.Outro sinal de alerta é a adoção de falas agressivas ou misóginas contra mulheres. Mesmo quando não resultam em ações concretas, esses discursos deslegitimam a humanidade feminina. Manifestações desse tipo, ainda que tratadas como brincadeira, não devem ser naturalizadas. Elas funcionam como uma autorização simbólica para a violência e precisam ser observadas com atenção”, afirma a cientista.

Psicólogo Sávio Macêdo. Foto: Divulgação 

O psicólogo e mestre em psicologia da saúde, com atuação no enfrentamento da violência contra a mulher, Sávio Macêdo também concorda que a vulnerabilidade da juventude é o momento crucial para a solidificação do pensamento masculinista e machista

“Essas reações são reflexo de um código de ação baseado na violência, que se desenvolve ainda na pré-adolescência, naquilo que a psicologia chama de pele psíquica, uma espécie de casca construída socialmente. É a chamada “casca de macho”, que impede o homem de falar sobre suas dores, medos, raiva ou inveja, fazendo com que ele resolva tudo por meio da violência e do ódio”.

Ele explica que é preciso resgatar os meninos e homens da lógica reativa, abrindo espaço para que a sensibilidade - geralmente atribuída às mulheres dentro da lógica patriarcal -, seja valorizada e não menosprezada.

“É preciso incentivar o indivíduo para sentir, dialogar, reconhecer o medo e a raiva. Entender que sentir é permitido. A questão central é como agir a partir dessas emoções. A frustração pelo fim de um relacionamento, por exemplo, não pode ter a violência como um código de conduta. É necessário compreender que existem outras formas de agir”.

Violência em números 

Morrer apenas por negar a subalternidade e falhar em atingir os critérios impostos de submissão, é essa a pena para as mulheres vítimas de feminicídio no Brasil. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e ONU Mulheres, só em 2024, 83 mil mulheres e meninas foram mortas intencionalmente.

Dessas, 50 mil foram vítimas de parceiros íntimos ou familiares. Isso significa, aproximadamente, um assassinato a cada 10 minutos, uma média de 137 mortes por dia.

Em contraste, apenas 11% dos homicídios de homens foram cometidos por suas parceiras ou membros da família.  

Apenas no primeiro semestre de 2025, o Ligue 180, serviço do Ministério das Mulheres, registrou 594.118 atendimentos, com 86.025 denúncias de violência contra mulheres. O número destacou um aumento de 2,9% em comparação ao mesmo período do ano anterior. 

O cenário é de epidemia. Entre os dias finais de novembro e as primeiras semanas de dezembro, mais de 13 casos de violência contra mulheres ganharam relevância na mídia nacional. Tainara Souza, arrastada pelo carro do ex-namorado, em São Paulo; Maria José, morta a facadas pelo marido na frente dos filhos, no Distrito Federal; Adriana, asfixiada pelo companheiro em São José da Coroa Grande, Pernambuco.

Essas são apenas algumas das muitas vítimas que tiveram suas histórias interrompidas e o seu direito de viver roubado pela violência imposta por um homem. 

O número de feminicídios alcançou o maior patamar já registrado no ano passado, com 1.492 ocorrências. O dado revela uma média de quatro mulheres assassinadas por dia no país.

O recorde foi registrado no ano em que a legislação endureceu as punições: atualmente, a condenação por feminicídio pode chegar a 40 anos de prisão.

Além do punitivismo

Em Pernambuco, a Secretaria da Mulher tem se mobilizado para trazer os homens ao centro do debate e resolver o problema de forma estrutural. Entre as iniciativas, o projeto “Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres” promove uma roda de conversa para debater e incentivar o engajamento masculino no incentivo ao respeito, a igualdade e ao enfrentamento às violências.

executiva de políticas para as mulheres de Pernambuco, Walkíria Alves. Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

A ação faz parte da campanha dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres e a Campanha do Laço Branco/HeForShe. Nos encontros, participam especialistas e profissionais com experiência na discussão sobre masculinidades, corresponsabilidade social e prevenção às violências de gênero.

Até o momento, de acordo com a Secretaria de Defesa Social (SDS),  o estado já registrou 82 casos de feminicídio em 2025. Um aumento de 8% em relação a 2024, que teve 76 casos.

Segundo a secretária executiva de políticas para as mulheres de Pernambuco, Walkíria Alves, a intenção das atividades de integração com os homens é fortalecer atitudes baseadas no respeito, no diálogo e na construção de uma sociedade mais justa e segura, reforçando a importância do engajamento masculino como elemento fundamental para a transformação cultural e social.

“Procuramos trazer a perspectiva da responsabilização individual e coletiva. Não basta apenas não praticar a violência; é preciso chamar os homens à responsabilidade, porque o silêncio e a omissão também matam. Quando um homem presencia ou tem conhecimento de um caso de violência e se omite, ele acaba corroborando as consequências daquele ato violento”, explica.

Para a secretária, é preciso desprogramar os mecanismos de culpabilização que caem sobre as mulheres.

“Em muitos casos, assim que a violência acontece, a mulher já passa a ser responsabilizada - pela roupa, pela atitude ou por qualquer outro motivo. Quase nunca se fala sobre quem cometeu o crime. Ao agir assim, transmite-se a ideia de que o homem sempre teria um motivo para agir com violência a partir de um comportamento feminino que ele não aprovou. Isso significa aceitar a violência como algo natural e questionar que tipo de homens estamos formando: homens que se sentem autorizados a serem violentos”, destaca.

O cabo Eliab Santos, da Polícia Militar de Pernambuco, é uma das peças chaves na articulação feita pelo estado. Ele atua como palestrante, trabalhando na conscientização de homens dentro e fora da corporação. 

“O primeiro passo é reconhecer a humanidade dessas mulheres, que são dignas de respeito. O segundo é conscientizar o mundo ao nosso redor, principalmente por meio das atitudes. Isso inclui repreender, de forma firme e respeitosa, amigos ou familiares que reproduzem comportamentos agressivos ou falas machistas”, reforça.

É esse o letramento que Sávio Macêdo destaca como essencial na quebra da corrente masculinista. 

“A mudança acontece por meio da inserção em ciclos de aprendizagem, na participação em grupos e espaços de escuta, inclusive com mulheres. Trata-se de uma escolha de vida e de participação social. Quem comete feminicídio precisa ser punido com o rigor da lei. Mas aqueles que se omitem, que não têm escuta sensível para perceber que uma amiga está sendo violentada, também precisam de letramento”.

Denúncia 

No Recife, mulheres vítimas de violência podem receber acolhimento, atendimento multidisciplinar e orientações de profissionais especializados nos seguintes locais:

Centro de Referência Clarice Lispector: Rua Doutor Silva Ferreira, 122, Santo Amaro (atendimento 24 horas);

Serviço Especializado e Regionalizado (SER) Clarice Lispector: Avenida Recife, 700, Areias (atendimento de segunda a domingo, das 7h às 19h);

Salas da Mulher em cinco unidades do Compaz — Eduardo Campos (Alto Santa Terezinha), 

Ariano Suassuna (Cordeiro), Dom Hélder Câmara (Coque) e Paulo Freire (Ibura).

Além disso, existe um Plantão WhatsApp, com funcionamento 24 horas, no número (81) 99488-6138.

Em Pernambuco, as denúncias de violência contra mulher podem ser feitas através do telefone 180, da Central de Atendimento à Mulher, que funciona 24 horas por dia, inclusive aos finais de semana e feriados;

A Polícia Militar pode ser contatada pelo 190, quando o crime estiver acontecendo;
Também é possível, no Grande Recife, fazer denúncias pelo Disque-Denúncia da Polícia Civil, no número (81) 3421-9595;

O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) também pode ser acionado de segunda a sexta-feira, das 12h às 18h, através de uma ligação gratuita para o número 0800.281.9455;
Outra opção é a Ouvidoria da Mulher de Pernambuco, que funciona pelo telefone 0800.281.8187;
Os endereços e telefones das Delegacias da Mulher podem ser consultados no site do TJPE.

Veja também

Newsletter