Maria Bethânia cita obstáculos para ampliar turnê e avalia possível show no Recife
Cantora, que anunciou série de shows por Rio, SP e Salvador para marcar seus 60 anos de carreira, saúda juventude ligada em sua música e comenta a passagem do tempo
Do Teatro de Arena (onde considera ter feito sua estreia profissional como cantora, aos 18 anos de idade, substituindo Nara Leão no espetáculo “Opinião”) às arenas (e estádios do país inteiro, que veio percorrendo desde o ano passado em gigantesco espetáculo com o irmão Caetano Veloso), de repente se passaram 60 anos. Aos 79, Maria Bethânia sentiu a necessidade de marcar a data redonda com um show novo.
Um daqueles como “Rosa dos ventos” (1971) ou “A cena muda” (1974), que contribuíram para a construção da lenda: a da cantora que conquistou um país pelas ondas do rádio e da TV, mas sempre fez do palco, com boas doses de teatralidade, a sua razão de existir. Isso, fosse nos maiores ou nos menores espaços — como aquele da estreia, no Rio, em fevereiro de 1965.
— Era um teatro de arena mesmo, e com arquibancada. E era o quê (a lotação)? Umas 300 pessoas? No máximo! — rememora, em entrevista ao Globo, a Maria Bethânia que, não faz muito tempo, em 2017 voltou a andar pelos corredores do shopping em Copacabana que abrigava o Arena, quando Caetano fez o show “Ofertório” com os filhos, no então Theatro Net. — Fui lá na porta, naquela muretinha em que a gente ficava conversando. (Chegar) dali para um estádio (é algo que) nunca imaginei. Mas foi uma alegria. O pequeno tem uma proximidade, uma intimidade, você fica no colo das pessoas, você está junto, sua mão chega até lá. Uma arena de grande estádio é o universo, e é bacana você ter chegado lá.
Com venda de ingressos que se inicia na próxima quinta-feira, dia 3, “Maria Bethânia: 60 anos de carreira” passa pelo Rio de Janeiro (dias 6, 7, 13 e 14 de setembro, no Vivo Rio), São Paulo (4, 5, 11 e 12 de outubro, no Tokio Marine Hall) e Salvador (15 de novembro, na Concha Acústica). A cantora se ressente de que, hoje em dia, “em uma casa com 300 lugares, você não bota em pé um espetáculo, você não paga um músico”. Por isso, optou por levar seu novo espetáculo ao que chama de “casa de shows”: aquelas que não são “nem teatro e nem estádio”.
— O mundo mudou, é tudo grande, tudo exagerado, tudo ampliado. Eu queria o Teatro da Praia (em Copacabana, hoje uma igreja evangélica), onde eu fiz o “Rosa dos ventos”, mas não tem condição, não pode — lamenta ela, enveredando no papo por outras memórias do bairro: as do Teatro Brigitte Blair (que resiste como espaço de shows), onde apresentou “Comigo me desavim” (1967), seu primeiro trabalho com o diretor Fauzi Arap (1938-2013), “meu parceiro, grande diretor, meu grande orientador, o homem que me compreendeu plenamente”.
‘Caetano e Chico? não fazem!’
Como em todos os shows que montou, uma questão é central para Bethânia: o repertório. Ela diz que, depois de cantar todos os seus sucessos na turnê com Caetano, a ideia é retomar canções significativas de espetáculos como “Rosa dos ventos”, “A cena muda” e “Pássaro da manhã” (1977). Será a expressão de como ela pensa a música e o teatro, a reunião do que está no momento em sua cabeça (“e no coração”, como faz questão de frisar). E com canções inéditas, sem as quais ela não gosta nem de pensar em um novo show. Alguma do irmão, por exemplo?
— Quem me dera! Caetano e Chico? Dificilíssimo, eles não fazem, não! (risos) — diverte-se, adiantando que o show terá inéditas de Rita Lee, Chico César, Roque Ferreira, Paulo César Pinheiro e Xande de Pilares. — É o repertório desses compositores que desde o princípio vêm comigo, compondo especialmente para mim, a meu pedido ou intuindo (que ela quer música). O Tim (Bernardes) disse que ia mandar uma música, não mandou ainda. Ele queria que eu gravasse uma coisa no disco dele e falou que estava fazendo uma música. Estou esperando!
Leia também
• Maria Bethânia anuncia turnê de 60 anos de carreira; veja datas, locais e preços de ingresso
• Leda Maria, última irmã de Collor de Mello, morre aos 83 anos
‘A juventude pôde ouvir a grandeza da MPB’
Com novos arranjos, nova banda e direção musical do baixista Jorge Helder, Bethânia espera atender com seu novo show ao clamor de um público jovem, que ela ganhou, acredita, depois da pandemia de Covid-19.
— A juventude paralisada resolveu ouvir música popular brasileira. Graças a Deus! Se teve algum benefício (na pandemia), foi esse. Naquela prisão, naquela situação difícil, as pessoas se cansaram de uma coisa só e começaram a procurar por outras coisas. Então, a juventude pôde ouvir a grandeza da música popular brasileira, os festivais pipocaram e os shows de todos, mesmo dos iniciantes, aconteceram já com 40 mil pessoas, em lugares gigantescos. É o rumo da vida — crê ela, feliz com as multidões nos seus shows desde então. — Lá de cima (do palco) a vista é linda, (algo) perto de Ipanema e da Baía de Todos-os-Santos, de tão bonita!
A cantora diz ainda se surpreender quando as pessoas se apegam demais às canções que gravou:
— As pessoas falam: “Essa é a minha!” Elas têm uma intimidade... isso é bonito.
E ri quando é lembrada da frase da personagem de Sônia Braga no filme “Aquarius”, que virou meme: “Toca Maria Bethânia pra ela, mostra que tu é intenso!”
— Eu concordo. Com tudo que Soninha disser, eu vou concordar, minha amiga querida, geminiana como eu.
Se há angústia no momento, é a de não saber ainda se vai poder levar o show dos 60 anos de carreira “a cada cidade linda do Brasil”.
— Queria estar perto das pessoas, levar meu pensamento hoje, ver como elas recebem aquilo com o que posso contribuir. Mas o mundo ficou meio insuportável, é meio difícil de ultrapassar as coisas do cotidiano, de aeroporto, de assalto, de Linha Vermelha fechada, de ônibus assaltado, de polícia, de tiro, de bandido... tá difícil! — desabafa. — E eu sou uma pessoa muito caseira, tenho pavor de hotel. Quando eu vim (para o Rio, em 1965, a fim de) fazer o “Opinião”, foi um problema, grave, porque eu disse: “Eu não fico em hotel!” E a pessoa mais próxima que nós tínhamos morava no Méier. Era muito longe do teatro!
Medo de avião
Bethânia reconhece que, contra a sua vontade, acabou vivendo em hotéis a vida inteira. Na turnê com Caetano, em especial, ele considerou a rotina de viagens “cansativíssima” (“a gente saía quinta-feira e voltava segunda, não aguento mais!”).
— Agora eu estou mais velha, fiz 79 anos. Tenho 60 anos de palco e quero não sofrer fazendo espetáculo, quero não ter que passar por sufocos, situações que me custam demais. Então, reduzi (a temporada) para duas cidades onde eu tenho casa, que são o Rio e Salvador; e São Paulo, que é aqui do lado. E eu sinto que São Paulo tem uma coisa que aproxima muito o brasileiro, tem muito Brasil ali dentro, muita gente do Brasil todo, misturada ali — explica. — Depois que eu fizer o que está programado, se eu descanso um pouco, posso retornar para fazer algumas cidades importantíssimas, que eu nunca deixei de fazer com nenhum espetáculo meu, como Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. O que eu não vou fazer é ficar dois dias viajando e os outros no hotel para cantar uma hora e meia, duas horas. Essas são as horas que valem a pena, o resto é um inferno para mim.
Junte-se ao tormento, ela observa, o seu patológico medo de avião.
— Na ponte Rio-São Paulo, eu vou gelada, tomando tranquilizante. Fui a primeira cantora a fazer turnê no Nordeste. Eu viajei o Nordeste, o Norte inteiro, inteirinho. De carro. Eu adorava, passava um dia viajando, aí tinha dois dias para descansar, conhecer a cidade, tomar um banho de mar, fazer o que eu quisesse. Agora, não, é na pilha, estresse — reclama. — Se Deus me ajudar e eu estiver com plena saúde e com alegria, se tudo der certo, se o show for bem recebido, se ele agradar as pessoas e me agradar... aí eu quero ver se faço (em outras cidades).
A menos de um ano de completar 80 anos de idade, Maria Bethânia se alegra em estar ao lado de tantos artistas octogenários, como o irmão e Gilberto Gil (“todo mundo gato, eu e eles todos”), fazendo shows e turnês pelo país e exterior:
— E o Bituca (Milton Nascimento) está trabalhando, gravando, viajando o mundo, o que ele não quer mais é palco. Mas gravar, ele grava, e canta muito, limpíssimo! O trabalho é o que nos sustenta.
Leia também
• Maria Bethânia anuncia turnê de 60 anos de carreira; veja datas, locais e preços de ingresso
• Leda Maria, última irmã de Collor de Mello, morre aos 83 anos
Fé cega, faca amolada
Bethânia se diz firme em sua religiosidade (“sou berço católico e sou da matriz africana”), a qual, segundo ela, ficou “bem nítida” na turnê com Caetano, em que o irmão cantou “Deus cuida de mim”, canção de louvor evangélico do pastor Kleber Lucas.
— (Essa música) estava nos solos de Caetano, era escolha pessoal, não tinha a ver com roteiro. Tinha o show de Caetano, quebrava, tinha o meu show, aí voltávamos ao espetáculo de Caetano e Bethânia — esclarece ela, para quem a convivência entre as religiões “pode ser saudável”. — Mas (no país, isso) ainda está confuso, não está bem determinado. Há desavenças, desentendimentos, acho que ainda não está equilibrada a relação entre as religiões fortes do Brasil. Você vê na conversa sobre religião alguém defendendo a sua com unhas e dentes, porque se sente ameaçado. Eu acho que religião é o contrário disso, religião é para ter segurança, para ter chão firme, mar de marinheiro.
Na volta aos palcos a partir de setembro, Maria Bethânia espera retomar os mesmos rituais para se apresentar que repete “desde 1965”:
— Eu tenho um horário muito espaçoso para, antes de fazer um show, estar no lugar. Tenho que deixar a rua muito longe de mim, palco tem uma coisa consagrada, não tem jeito. Então, são rituais simplíssimos, mas que precisam ser mantidos, é o que me dá chão para eu me desenvolver e cantar. Envolve tempo, alimentação... e rezo muito, tenho pequenos altares que gosto de carregar comigo.
E, é claro, voltarão também as peregrinações ao seu camarim.
— Eu sou uma cantora que gosta de falar com o público depois do show, gosto de saber do público. A vida inteira eu recebi e recebo. No show com Caetano foi impossível, porque não havia condição, eu saía do palco direto para o carro, porque senão nós não saíamos dos lugares. Era uma ordem de segurança da própria produção e das cidades — conta. — (No camarim) ganho muitos presentes, é muito engraçado, presentes lindos que eu guardo. Volta e meia eu faço cadernos com os cartões, gosto de ter memórias assim.
Cantora que lançou seu último disco de inéditas em 2021 (“Noturno”), Maria Bethânia se diz sem vontade de gravar outro, ao menos por enquanto (“o disco ficou meio inválido, ele não atinge as pessoas, mas talvez eu queira registrar esse show”). Em sua radiografia musical do Brasil de 2025, ela diz:
— Eu vou para o lado onde vejo o céu. Vejo a mata respirando, vejo o mar balançando. Eu ouço a sanfona do São João, ouço a Iza reclamando aqui na favela. E vejo vozes novas aparecendo com brilho, com vigor.
‘Mãe votou até os 105 anos’
Já na radiografia política do país atual, ela volta a 1965 (“era ditadura muito forte e o grupo de Arena de São Paulo e o Opinião do Rio se juntaram em espetáculos mágicos contra aquilo”) para chegar ao grande público jovem, de 2025, que recebeu a ela e a Caetano “com o vocal deles, o coral de 40 ou 60 mil pessoas, de ‘sem anistia!’”.
— As pessoas estão todas ligadas, ninguém está desligado, não. A juventude está esperta. Agora, acho que está um pouco de desarrumado, não tem um núcleo ali para expandir isso e fortalecer (um movimento). É disso que eu sinto falta. Na época do “Opinião”, ele existia, porque você tinha que ser radical. Era radical, era ditadura. Então, você tinha que ser radical. Agora, não é isso, graças a Deus. Agora é democracia. Você pode estar zangado com isso, com aquilo, mas é democracia — afirma. — Estou isenta de votar, lógico, tenho 79 anos, mas, se tem eleição, eu vou. Minha mãe votou até os 105 anos. Deus é bom e o Brasil tem juízo. Minha certeza é a de que o Brasil é capaz de vencer, de escolher o melhor para ele. Não tem outra saída, é democracia.

