Transexuais encontram acolhimento em pelada feminina
Grupo trans utilizam o futebol como ferramenta de inserção e, acima de tudo, como um esporte capaz de ser reinventado
Entre batalhas diárias, a bola torna-se elemento libertador. O futebol surgiu como um esporte elitista, exclusivo à prática dos europeus do alto escalão. Chegou ao Brasil, ainda no século XIX, revestido do glamour que hoje não cabe mais no esporte. Apenas ricos e brancos se divertiam com a bola nos pés. Realidade que foi mudando a partir da persistência de negros em chamar aquele espaço também de seu. Assim, expandiu-se a ideia do esporte como um meio de inclusão. Mais de um século depois, transexuais utilizam o futebol como ferramenta de inserção e, acima de tudo, como um esporte capaz de ser reinventado.
Se em casa e na sociedade a dificuldade de aceitação é grande, as quadras, porém, são ambientes íntimos. É no chão de concreto que Victor Hugo de Santana e Bruno Alves da Silva se comunicam com o mundo. Os dois são homens trans e lutam diariamente pelo reconhecimento de sua existência no meio social, inclusive, no futebol. Mas o processo de descoberta muitas vezes se divide na dualidade de dois sentimentos: alegria por reconhecer a verdadeira identidade e tristeza pelas barreiras impostas pela vida.
“No dia 12 de janeiro de 2018, eu passei a madrugada inteira pesquisando sobre isso. Aí foi quando percebi, aceitei e chorei muito, porque eu sabia o quão difícil seria e está sendo ser trans na situação que eu me encontro, tanto em sociedade, quanto familiar e psicologicamente. Foi o momento mais feliz e triste da minha vida, ao mesmo tempo. Porque foi quando eu me aceitei e vi quem sou. Mas também triste, porque eu sabia o quanto iria ter que lutar e até hoje luto também para ser quem sou”, relatou Victor, que, aos 18 anos, é estudante do curso de Química do IFPE. Tendo em vista a dificuldade financeira que enfrenta, o estudante recebe uma bolsa de R$ 250 do Instituto Federal para se manter, e ainda não deu início ao processo de transição de gênero. O esporte sempre atuou como intermediador das contrariedades encontradas no caminho.
“Foi uma situação complicada quebrar vários princípios que foram colocados em mim quando eu era pequeno e eu me encontrei muito no futebol. Quando eu me sentia muito mal, meus amigos me chamavam pra jogar bola e eu esquecia praticamente todos os problemas. Era meu refúgio, jogar uma pelada, dar uns dribles, fazer gol. Era libertador. Mesmo com o preconceito dos meus pais”, explicou. Depois de sucessivos conflitos dentro de casa, Victor recebeu ajuda e, hoje, mora com um amigo, em localidade que preferiu não informar.
Enquanto isso, entre as idas e vindas de uma pelada e outra, há cerca de dois anos Bruno deu início ao processo de transição. Com 24, ele cursa o sexto período de fisioterapia em uma universidade privada e trabalha em um cinema no Centro do Recife. Subjugado por se identificar como homem trans, ele compartilha de grande parte da sensação expressa por Victor. “No trabalho e na família eu não tenho o acolhimento que tenho em outros lugares. Eu tenho migalhas. Algumas pessoas aceitam, algumas não. Outras não ligam”, lamenta.
A população trans no Brasil esbarra diariamente em olhares, falas e ações que a invisibiliza. Essa realidade é refletida em números que, muitas vezes, não passam de estatística. Prova disso é que o Brasil lidera o ranking dos países que mais assassinam transexuais no mundo. Somente em 2018, ocorreram 163 assassinatos contra pessoas trans. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, desse montante, apenas 15 suspeitos foram presos, o que representa 9% dos casos.
“Já cheguei a mostrar minha identidade na cara da pessoa e, mesmo assim, ela continuou me chamando por outro nome (o de nascimento), dizendo que não conseguia me chamar por Bruno”, relatou.
A discriminação social resultou na baixa perspectiva dos dois jovens serem acolhidos em uma pelada masculina. Por outro lado, assim como traduzida as raízes do futebol, uma pelada organizada por mulheres os recebeu de braços abertos. Tímidos, Victor e Bruno jogam no Aurora Futebol Clube Recife, uma pelada feminina, realizada semanalmente, na quadra pública da rua da Aurora, no Centro do Recife. Os dois contaram que já haviam participado de alguns jogos na pelada antes da identificação com o gênero masculino e, mesmo assim, o acolhimento das meninas emocionou. Segundo eles, há duas semanas, já no fim da pelada, as meninas formaram uma roda e explicaram que, na ocasião, haviam jogado na companhia de dois homens trans, sob a explicação de que ‘o Aurora é uma pelada inclusiva’.
“As meninas do Aurora são super de boa. Eu sabia que se eu chegasse aqui, elas iriam me acolher. Antes mesmo de elas fazerem a roda e falarem, todo mundo já estava tratando no masculino”, disse Bruno. Em concordância, Victor foi assertivo. “Tenho muito o que agradecer às meninas. Eu realmente achei que elas não iriam aceitar, por ser uma pelada feminina. Se elas não aceitassem eu não teria lugar para jogar. Fiquei feliz por elas entenderem a situação e deixarem eu jogar. Foi um dia incrível. Eu me senti aceito por ser quem sou”, finalizou. Nesse sentido, entre as variantes que cercam o esporte, a inclusão mostra-se como o dialeto mais bonito do futebol.
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