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Saúde

Aos 46 anos, homem com doença genética sobrevive graças a transfusões de sangue a cada 15 dias

Eduardo Fróes, de 46 anos, tem beta-talassemia maior, doença genética que causa anemia grave; especialistas explicam a condição, sintomas e tratamento

Beta-talassemia, uma doença rara, de origem genética, caracterizada pela baixa produção de hemoglobinas no sangue.Beta-talassemia, uma doença rara, de origem genética, caracterizada pela baixa produção de hemoglobinas no sangue. - Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Quando tinha apenas 7 meses de vida, Eduardo Fróes era uma criança muito pálida. Como ele comia bem, dormia e saía com frequência para tomar banho de sol, sua mãe desconfiou da palidez e decidiu levá-lo para fazer um exame de sangue.

Para sua surpresa, o resultado apontou uma anemia gravíssima. Suas hemácias, as células vermelhas do sangue, responsáveis pelo transporte de oxigênio, estavam baixíssimas e ele precisava de uma transfusão de sangue urgente.

O que ele ainda não sabia é que isso se tornaria um procedimento cotidiano na vida de seu filho devido à beta-talassemia, uma doença rara, de origem genética, caracterizada pela baixa produção de hemoglobinas no sangue.

No entanto, levou quatro anos para que ele fosse oficialmente diagnosticado com a condição.

— Eu já estava com quase 4 anos de idade, só recebendo transfusão, quando fechou o diagnóstico. Disseram que eu tinha doença muito rara que se chama talassemia e que a expectativa de vida era de 6 a 7 anos porque não tinha muito o que fazer — conta Fróes, que hoje é presidente da ABRASTA - Associação Brasileira de Talassemia. — Minha mãe ficou doida. Mas eu brinco que o bom é que eu tinha festa de aniversário todo ano.

Brincadeiras à parte, Fróes superou e muito a expectativa de vida. Hoje, aos 46 anos, ele segue em tratamento para a doença e vive uma vida normal, como conta que sempre viveu. Mas isso não significa que não houve desafios pelo caminho.

O primeiro foi conseguir o diagnóstico em si. Depois, sobreviver não só à doença, mas também aos tratamentos.

— Estou nesse processo desde os meus sete meses, em transfusões recorrentes. Sou mais um sobrevivente, porque eu era totalmente desacreditado — diz.

A beta-talassemia é um grupo de doenças hereditárias, ou seja, transmitidas de pais para filhos, causadas por mutações no gene da cadeia beta da hemoglobina. Essas mutações reduzem ou anulam a produção da cadeia beta, provocando anemia.

A talassemia afeta pessoas que têm laços ancestrais com o Mediterrâneo (portugueses, espanhóis, italianos, gregos, egípcios, libaneses). No Brasil, ela é considerada uma doença ultrarrara, afetando até uma em cada 50 mil pessoas nascidas.

A gravidade varia: algumas pessoas têm uma forma leve (portadoras/traço) e vivem sem maiores problemas, enquanto outras — na forma chamada talassemia major ou talassemia dependente de transfusão — precisam de transfusões regulares para sobreviver.

Os glóbulos vermelhos transportam oxigênio — essencial para o funcionamento adequado de todas as células — por todo o corpo.

Quando uma pessoa não produz o suficiente, como acontece com a beta-talassemia dependente de transfusão, desenvolve anemia grave, ou seja, uma baixa contagem de glóbulos vermelhos.

Isso pode levar a sintomas como fadiga, palidez e indisposição inicialmente. Com o passar do tempo, a anemia crônica leva a outros problemas, como atraso de crescimento, alteração óssea, aumento do tamanho do baço, atraso cognitivo e maior risco de infecção e internações, além de problemas cardíacos.

O problema é que não é só a anemia em si que causa danos ao organismo. As transfusões frequentes – que podem variar de uma por semana até uma por mês, em média — também são prejudiciais.

A sobrecarga de ferro é o principal efeito colateral da transfusão e que representa o maior risco para esses pacientes.

— O que realmente impacta na vida e leva esses pacientes a óbito é a sobrecarga de ferro. Que é esse acúmulo de ferro que acaba acometendo os órgãos vitais — explica a médica Égyla Cavalcante, gerente médica de hematologia da Bristol Myers Squibb Brasil. — Então, eles têm insuficiência cardíaca, insuficiência hepática, e isso no finalzinho da infância, no comecinho da vida adulta, já começa a pesar.

Por isso, outro pilar do tratamento são os quelantes de ferro, medicamentos orais ou injetáveis que ajudam a tirar o excesso de ferro do organismo. Aliás, a eficácia da quelação é um dos principais fatores que determinaram a melhoria da sobrevida nas últimas décadas.

— Essa doença passou por uma transformação muito importante dos anos 1970 pra cá porque, antes, os médicos não sabiam como conduzir. Então, a criança ficava ali com anemia crônica, com a sua hemoglobina muito baixa e eles só davam sangue quando o paciente já estava sem aguentar. Assim, e quando cresciam, a vida deles era muito limitada. Eles viviam até 30 anos, 40 anos e com muita comorbidade, porque a anemia crônica por muito tempo traz um monte de complicação — explica a hematologista.

De acordo com a médica, ao longo do tempo foi se descobrindo que é preciso deixar a hemoglobina desses pacientes mais alta, com transfusões mais frequentes, além do surgimento de novos medicamentos que facilitaram o manejo da doença e, consequentemente, aumentaram a qualidade de vida. Hoje, a sobrevida desses pacientes é praticamente igual da população em geral.

Outro medicamento que ajudou a mudar o curso da doença é o luspatercepte, da farmacêutica Bristol-Myers Squibb, comercialmente conhecido como Reblozyl. Trata-se de uma injeção administrada a cada três semanas que ajuda o corpo a produzir mais glóbulos vermelhos e, consequentemente, reduz a quantidade de bolsas transfundidas e melhora a qualidade de vida dos pacientes.

Eduardo usa o medicamento há cerca de um ano e meio e embora faça transfusões a cada 15 dias, a quantidade de concentrado em cada sessão diminuiu de três bolsas para apenas uma.

— Eu tinha um acúmulo de ferro hepático considerável e não conseguia limpar esse fígado. Eu fazia terapia combinada de dois quelantes e mesmo assim, esse ferro estava ali. Depois que a gente diminuiu o sangue, minha ferritina baixou. A gente fez de novo uma ressonância e o fígado está limpo. Não tem mais nada de ferro nele, e foi graças à redução das transfusões — comemora.

Embora o tratamento da beta-talassemia grave dependente de transfusão, como é o caso de Eduardo, esteja contemplado no SUS, o luspatercepte não está disponível na rede pública. Até o momento, ele pode ser encontrado apenas na rede privada e o acesso é bastante restrito devido ao custo.

A dose pode chegar a custar R$49.465,27, considerando uma pessoa de 75 kg (a dose do medicamento varia de acordo com o peso do paciente) e um imposto de 23%, e nem sempre ele está contemplado na cobertura dos planos de saúde.

Mas isso pode mudar dado que a incorporação do medicamento ao SUS está em avaliação pela pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).

No SUS, o tratamento padrão envolve transfusões de sangue regulares de concentrado de hemácias, associadas à terapia de quelação de ferro.

No entanto, o acesso é marcado por desafios, como a dificuldade de acesso a exames cruciais, como a ressonância magnética T2, que identifica a quantidade de ferro acumulado no coração e no fígado, e é fundamental para orientar a conduta terapêutica.

Ausência da terapia combinada com dois tipos de quelantes em alguns estados e falta de estrutura em alguns estados, o que faz com que alguns pacientes demorem dias para conseguir chegar ao centro de referência para receber o tratamento, em especial nas regiões Norte e Nordeste.

Há ainda uma quarta opção de tratamento, que representa a cura da beta-talassemia, que é o transplante de medula de um doador aparentado compatível.

No entanto, essa opção ainda é pouco realizada por falta de acesso, doadores ou porque os pacientes já chegam muito tardiamente ao centro de transplante.

— Quanto mais precoce é realizado o transplante, menos lesões dos órgãos o paciente vai ter. Estudos mostram que o ideal é transplantar uma criança até os 7 anos ou num número menor do que 20 transfusões ao longo da vida. — diz o médico Ricardo Helman, hematologista do Einstein. — Teoricamente, todos os pacientes com a talassemia grave vão se beneficiar do transplante. O grande gargalo é ter doadores disponíveis.

Outro fator que contribui para a melhora no tratamento e aumento da expectativa de vida dos pacientes é a realização do teste do pezinho, que rastreia, entre outras doenças, a talassemia.

O diagnóstico só é fechado a partir do sexto mês de vida. Mas a triagem pelo teste do pezinho já alerta os pais sobre a necessidade de procurar ajuda especializada.

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