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DIA DE FINADOS

Como as religiões encaram a morte: fé, rituais e esperança diante do fim da vida

A Folha de Pernambuco entrevistou líderes religiosos para entender o que as diferentes religiões pensam sobre o fim da vida

Folha de Pernambuco entrevistou líderes religiosos para entender o significado da morte nas diferentes crenças do BrasilFolha de Pernambuco entrevistou líderes religiosos para entender o significado da morte nas diferentes crenças do Brasil - Foto: Felipe Ribeiro e Arthur Botelho

A morte, inevitável e misteriosa, atravessa todas as culturas e crenças. Para uns, é fim. Para outros, apenas passagem, retorno e renascimento.

Às vésperas do Dia de Finados, celebrado neste domingo (2), a Folha de Pernambuco ouviu representantes de diferentes tradições religiosas sobre como cada uma compreende a finitude e o que há,  ou pode haver, depois dela. 

Catolicismo 

Para o monsenhor Luciano Brito, vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife, a morte é, antes de tudo, “Páscoa para a verdadeira vida”.

“Tudo isso porque Jesus é vencedor da morte e do pecado. A ressurreição de Cristo nos dá a convicção de que a morte não é fim, mas início da vida eterna”, afirma.

Luciano Brito, vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife. Foto: Arthur Botelho / Folha de Pernambuco

Segundo o religioso, o Dia de Finados, celebrado um dia após a festa de Todos os Santos, é um momento de fé e esperança, não de lamento.

“Não é um culto de saudade, mas uma celebração de fé. As pessoas vão aos cemitérios, levam flores, acendem velas, rezam. Não veneramos os mortos, mas afirmamos a nossa crença de que eles vivem em Deus”.

Na tradição católica, o corpo é sepultado, mas a alma, criada por Deus, “repousa na eternidade”.

O Vigário destaca que a convicção na vida eterna vem das escrituras da Bíblia Sagrada.

“Jesus disse ao ladrão na cruz: hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Assim, acreditamos na ressurreição da carne e na vida eterna”, explica. O purgatório, acrescenta, é visto como um tempo de espera, “onde as almas aguardam a entrada definitiva na glória celeste”.

Os ritos católicos de despedida, como o velório e a missa, cumprem, segundo o vigário, uma função comunitária e pedagógica.

“Eles nos ajudam a expressar a dor da perda, mas também a reafirmar a esperança cristã. A oração e a presença fraterna são o bálsamo que enxuga as lágrimas”.

Para ele, a mensagem essencial da fé católica diante da morte está nas palavras de Jesus a Marta, diante do túmulo de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá”.

Espiritismo 

No espiritismo, a morte tampouco é entendida como fim, mas como um intervalo natural entre uma vida e outra.

“Sabemos que é só o corpo material que morre, pois somos espíritos imortais”, explica Cristina Pires, vice-presidente da Federação Espírita Pernambucana (FEP).

“O luto e a despedida são vividos com menos pesar, porque sabemos das possibilidades do reencontro. As lágrimas são naturais e a saudade é real, mas compreendemos que a separação é passageira”.

A doutrina codificada por Allan Kardec no século XIX baseia-se na ideia de reencarnação e evolução espiritual.

Cristina Pires, vice-presidente da Federação Espírita Pernambucana (FEP). Foto: Felipe Ribeiro / Folha de Pernambuco

“O espiritismo nos diz de onde viemos, o que estamos fazendo aqui e para onde vamos. Quando compreendemos isso, o medo da morte diminui, e o sentido da vida se amplia”, diz Cristina.

A comunicação entre vivos e mortos, princípio conhecido da doutrina, é vista como um processo natural.

“A Doutrina Espírita apenas deixou mais lógico e compreensível como se processa essa comunicação. Saber das possibilidades do reencontro nos enche de esperanças”, explica.

Nos centros espíritas, pessoas enlutadas procuram conforto.

“Acolhemos com carinho e responsabilidade. Muitos querem ser ouvidos, outros buscam respostas. Compartilhamos o que compreendemos, mas não prometemos notícias. Como dizia Chico Xavier, o telefone só toca de lá para cá e tudo acontece segundo a vontade de Deus”.

Para os espíritas, o Dia de Finados é tempo de reflexão sobre a vida.

“Convidamos os fiéis a pensar em como estamos vivendo, não em como morremos. É o momento de olhar mais nos olhos, escutar mais, sorrir mais e amar mais”, resume Cristina.

Candomblé

No Candomblé, a morte é vista como um processo de encantamento, uma passagem do mundo material para o espiritual.

“Nós não enxergamos a morte como um fim, mas como encantamento”, explica Mãe Miriam de Xangô, do terreiro Aganjú Aséobà, em Afogados, na Zona Oeste do Recife.

Mãe Miriam de Xangô, do terreiro Aganjú Aséobà, em Afogados. Foto: Felipe Riberio / Folha de Pernambuco

Quando alguém morre, explica, é realizado o ritual do Axexê, trinta dias após o falecimento.

“É a despedida do espírito da Terra. Servimos as comidas e bebidas que a pessoa gostava, colocamos suas roupas, guias e objetos pessoais. Alimentamos sua última estadia entre nós antes de seguir”.

Após essa travessia, o espírito é chamado de egun.

“No Candomblé, quando nascemos, recebemos um nome sagrado, o Dijina. E, quando encantamos, recebemos outro, próprio do mundo espiritual”, detalha.

Os Eguns são lembrados todos os anos, em oferendas e rituais.

“A morte não rompe o laço com quem amamos,  apenas muda a forma de se relacionar. Continuamos cultuando, rezando e lembrando.”

O culto aos ancestrais é central na religião.

“A orixá Oyá, ou Iansã, conduz as almas entre o mundo dos vivos e dos mortos”, diz Mãe Miriam. “As mulheres não participam diretamente dos rituais do Balé, espaço sagrado dos Eguns, mas preparam as comidas e elementos”.

Ela reconhece que o medo da morte existe, mas ressalta que o conforto vem em saber que os mortos se transformam em ancestrais que guiam e motivam os vivos.

“No Candomblé, o que morre é apenas a matéria. O espírito continua vivo, encantado, sendo cuidado pelos orixás. Oyá e Nanã acolhem e conduzem essa travessia. A morte não é castigo, é passagem”.

Quanto ao que vem depois da morte, Mãe Miriam explica que não existe a ideia de uma punição por erros praticados em vida.

“Se fizermos algo de errado em vida, vamos pagar por esse erro ainda em vida, e não depois da morte. Se desobedecermos nosso Orixá, sofreremos aqui, porque ele quer nos ensinar a viver bem. Nosso orixá é justo, mas também é amor”.

Budismo

A filosofia budista entende a morte como parte natural e inseparável da existência.

“Nada é mais definitivo do que a morte, mas ela não é o fim de tudo”, explica Pablo Pimentel, representante da comunidade Soka Gakkai no Recife.

Ele lembra que a busca de Buda começou com o desejo de compreender os quatro sofrimentos da vida: nascimento, envelhecimento, doença e morte.

 Pablo Pimentel, representante da comunidade Soka Gakkai no Recife. Foto: Felipe Ribeiro / Folha de Pernambuco 

“Para o budismo, a morte é apenas o ponto de partida para um novo renascimento. Viver com essa consciência nos ajuda a não nos desesperamos diante dela”.

Os rituais também refletem essa visão cíclica. O Shoko, por exemplo, é o ato de oferecer incenso ao falecido em memória de sua felicidade eterna.

Já as cerimônias do sétimo e quadragésimo nono dia simbolizam oportunidades de renascimento.

“O ser humano tem a chance de renascer a cada sete dias, e o 49º marca o fim do luto, quando o período de renascimento se completa”, explica.

O luto, segundo Pimentel, é vivenciado com serenidade.

“A alegria de viver demonstrada pelos familiares se transforma em alegria para o falecido. A boa sorte conquistada pela família é, em si, a oração mais efetiva para o repouso do espírito”.

A crença na impermanência e no desapego ajuda os praticantes a aceitar a morte e a valorizar o presente.

“Um dia de vida é mais valioso que todos os tesouros do universo”, cita o budista. “Devemos nos dedicar ao máximo a cada instante, pois não sabemos se estaremos vivos no dia seguinte”.

Protestantismo 

No cristianismo evangélico, a morte também é entendida como passagem, mas a salvação depende da fé em Cristo.

“Sabemos que o fim humano é a morte, mas acreditamos na vida eterna para aqueles que viveram com Cristo aqui na Terra”, afirma o pastor Joaquim do Amaral, presidente da Igreja de Cristo no Brasil.

Para ele, o destino pós-vida é definido pela relação pessoal com Deus.

“A salvação não vem por mérito próprio, mas pela graça de Deus. O sacrifício de Jesus na cruz foi único e perfeito, basta crer e aceitar”, explica.

Pastor Joaquim do Amaral, presidente da Igreja de Cristo no Brasil. Foto: Arthur Botelho / Folha de Pernambuco

Sobre o Dia de Finados, ele observa: “É uma data que tem significado para a memória dos que partiram, mas para nós, evangélicos, a oração deve ser feita pelos vivos. Depois da morte, o destino já está determinado”.

Os ritos evangélicos são simples e voltados ao consolo.

“Durante o velório, realizamos cultos com mensagens e cânticos, para confortar as famílias. A diferença é que não oramos pelos mortos, e sim pelos que ficaram”, explica Amaral.

Para o pastor, o ensinamento essencial vem de João 11: “Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, nunca morrerá eternamente”.

Fé originária 

O escritor Kaíke Nanne, autor do livro Como Dançar com os Mortos, passou trinta anos estudando rituais fúnebres e práticas ancestrais em diferentes povos do mundo.

“A ideia da dança com os mortos pode ser simbólica - uma relação ativa com os ancestrais - ou literal, como no ritual Famadihana, em Madagascar, onde parentes dançam com os corpos de seus mortos antes do novo sepultamento”, explica.

Kaíke defende que o Ocidente reduziu a morte ao silêncio e à ruptura.

“Nos habituamos a vê-la como fim, mas para os povos tradicionais ela é parte do ciclo da vida. Nesses lugares, o tempo não é linear, é uma espiral. Quem morre continua na comunidade, participa das decisões, aconselha, orienta. É o que chamo de ancestralidade ativa”.

Kaíke lembra que o medo da morte está ligado à forma ocidental de compreender o tempo.

“Somos filhos do tempo. Já os povos originários são filhos da terra, do vento, da floresta. Para eles, pouco importa o transcurso do tempo, o importante é manter o mundo funcionando".

Ao refletir sobre o Dia de Finados, o escritor sugere uma provocação.

“Talvez devêssemos aprender com esses povos a sentir a presença dos que amamos. Não como lembrança distante, mas como presença viva. Dançar com os mortos é, no fundo, um modo de continuar a viver”.

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