De Xuxa ao Mundo Bita: como os personagens infantis ajudam a formar valores
Com mensagens que ultrapassam gerações, artistas infantis contam como é produzir arte que impacta o futuro de tantas crianças
As lembranças da infância, muitas vezes, têm trilha sonora. Um tema de desenho animado, um bordão de programa de TV, uma canção que embalava as manhãs diante da telinha.
Esses ícones culturais, que vão da Turma da Mônica a Xuxa, do Palhaço Chocolate ao Mundo Bita, são mais do que entretenimento, eles ajudam a formar afetos, valores e modos de ver o mundo.
Em um tempo em que as telas digitais substituíram boa parte das brincadeiras de rua, entender o papel desses símbolos pode ser também uma forma de refletir sobre o tipo de adulto que cada geração se torna.
O sociólogo Wagner Arandas, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão do Centro Universitário Frassinetti do Recife (UniFafire), explica que as produções culturais infantis são, antes de tudo, reflexos do seu tempo.
"Toda produção de mídia tem a ver com o momento em que é criada. Por mais que pareça ficção, ela sempre oferece uma resposta à realidade social daquele período", explica.
É assim, que de forma quase inconsciente, crianças desenvolvem uma espécie de senso comum à respeito do mundo que às cerca e passam a aguçar o olhar crítico.
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Além do valores, são as obras culturais cujo impacto ultrapassa décadas que formam nas crianças alguns dos primeiros laços de conexão mútua com os pais. Para Arandas, é essa continuidade que cria um elo entre gerações.
"Muitas vezes, pais e filhos se conectam justamente por essas referências compartilhadas. O filme da Barbie, por exemplo, reuniu mães e filhas no cinema. Cada uma levou para a sala de exibição um significado diferente, mas todas estavam ligadas pela memória afetiva de uma personagem que atravessou décadas", observa.
Outros fenômenos de popularidade e audiência, como "Os Trapalhões", vivenciaram esse movimento. Surgido em meados da década de 1960, o quarteto composto por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias permanece vivo no imaginário do público brasileiro graças, em parte, ao que as gerações passadas transmitiram às que vieram depois.
Assim como também fazem até hoje os admiradores da dupla Patati Patatá, nascida nos anos 1980 e que se notabilizou como um grande sucesso de entretenimento para as crianças.
Vínculo
Entre a nostalgia e a reinvenção, o universo infantil segue sendo um espelho das mudanças culturais, tecnológicas e emocionais da sociedade.
Se nas décadas de 1980 e 1990 as manhãs eram marcadas por programas como Xou da Xuxa, Castelo Rá-Tim-Bum e TV Colosso, o século XXI assistiu ao surgimento de novos fenômenos.
Um dos maiores deles nasceu em Pernambuco: o Mundo Bita. Criado por Chaps Melo, o personagem de bigode laranja e cartola surgiu sem pretensões comerciais, ainda no quarto da filha do artista.
"O Bita nasceu antes de ser Bita. Foi desenhado para decorar o quarto da minha filha, a Bebel, quando ela ainda estava na barriga da mãe. Só depois é que esse apresentador de circo se tornou algo comercial, ganhou um universo, amigos, músicas e histórias", lembra Chaps.
Criado pro Chaps Melo, conteúdo do Mundo Bita se preocupa com ensinamento de lições de vida e empatia. Foto: DivulgaçãoHoje, o Mundo Bita é um dos maiores projetos de música e animação infantil do país, com milhões de visualizações e parcerias com artistas como Gilberto Gil, Alceu Valença e Milton Nascimento. O conteúdo, porém, vai além da diversão.
"Falamos com milhões de famílias. É uma alegria e também uma grande responsabilidade. Nossas canções tratam de temas como diversidade, sentimentos, meio ambiente e respeito, sempre com muito cuidado e diálogo com especialistas", explica o criador.
Para ele, a missão é dupla: educar culturalmente e preservar a sensibilidade.
"Queremos despertar empatia e consciência, sem perder o afeto e a brasilidade. O Mundo Bita também é um professor cultural, queremos que as crianças cresçam conhecendo nossa música, nossa arte, nossa forma de sentir".
Animação do Mundo Bita. Foto: DivulgaçãoAprendizado
Com cinco décadas de carreira, o Palhaço Chocolate é um dos ícones mais longevos do imaginário infantil pernambucano. Criado por Ulisses Dornelas, o personagem nasceu no teatro e hoje ocupa o coração de gerações inteiras de famílias.
"O camarim é o espaço da transformação do artista. Entra o Ulisses e sai o Palhaço Chocolate. Essa é a mágica do teatro, e o Chocolate carrega essa bagagem desde os tempos do Planeta dos Bombons", conta o artista.
Mais do que divertir, Chocolate acredita que o riso é um instrumento de educação emocional.
"As crianças são nossos grandes professores. Eu me inspiro nelas e passei a observá-las, fazendo roteiro dos espetáculos e percebendo como elas se comportam, porque a criança é muito sincera. Quando gostam, batem palma e abraçam. Quando não gostam, simplesmente vão embora", destaca.
Além da observação atenta ao comportamento infantil, Chocolate também chama atenção em seus trabalhos para a importância de respeitar a individualidade e a capacidade das crianças.
Para o Palhaço Chocolate, o importante é respeitar a individualidade das crianças. Foto: Felipe Ribeiro/Folha de Pernambuco"As crianças têm que ser tratadas como crianças, que podem ter grandes ideias dentro do seu espaço. A criança não pode ser interrompida no seu pensamento. Meu papel é estimular essa criatividade, as boas maneiras e o prazer de aprender", afirma.
Outro pernambucano que transformou a arte em ferramenta educativa é Bruno César, o Tio Bruninho.
Professor de música e educador infantil há 25 anos, ele criou o projeto quase por acaso ao perceber que faltavam canções adequadas ao universo das crianças pequenas.
Desejo de produzir música partiu da vontade de oferecer um repertório pedagógico para as crianças. Foto: Thiago Medeiros / Divulgação"Quando comecei a dar aula para uma turma de dois anos, percebi que o repertório infantil não atendia às minhas necessidades pedagógicas. Comecei a compor músicas próprias, inspiradas nas situações do cotidiano das crianças, e funcionou", conta.
O sucesso foi imediato: de um CD artesanal, nasceu uma banda, shows lotados e uma legião de fãs mirins. Hoje, o projeto é um dos principais nomes da música infantil no Nordeste, com público em 23 países.
Ao lado da esposa, Carol, que interpreta a Princesa Carol nos palcos, o artista busca unir diversão e valores humanos.
"As letras são pensadas pedagogicamente, com cuidado para respeitar o que as crianças compreendem. Queremos transmitir mensagens de amizade, lealdade, companheirismo e honestidade. Num mundo cheio de maus exemplos, queremos ser uma referência de alegria e bons sentimentos", afirma.
Supervisão
Os maus exemplos, no entanto, são as exceções que preocupam o diretor do Instituto Primeira Infância Plantar Amor (Pipa), Rogério Morais, que adverte para a atenção dos pais ao conteúdo que está sendo consumido pelos filhos.
Segundo Morais, é preciso que os familiares funcionem como mediadores do tipo de produto consumido pelas crianças, para que elas possam entrar em contato com materiais educativos que destacam mensagens positivas e formadoras de caráter.
"Existem produções excelentes, especialmente em canais educativos e plataformas de streaming, que dialogam com o mundo cultural e incentivam a imaginação. O importante é o olhar crítico e a presença dos responsáveis", explica.
Pontes
Para o criador do Mundo Bita, a arte, quando elaborada com respeito e cuidado, se torna a ponte entre o imaginário infantil e o mundo real.
"A criança que cresce com estímulos saudáveis tende a se tornar um adulto mais sensível, mais afetivo. O conteúdo do Bita busca justamente isso: formar pela alegria, pela cultura e pelo respeito", afirma Chaps Melo.
Essa perspectiva também é compartilhada por Tio Bruninho, que vê o seu trabalho com a banda e as apresentações culturais como antídoto para o excesso de tecnologia.
"A tecnologia é incrível, mas precisa ser bem usada. A arte toca o coração, desperta empatia e ajuda a cultivar valores. Se uma música nossa inspira ou acalma alguém num momento difícil, a missão está cumprida", diz.
De Xuxa a Bita, do Planeta dos Bombons aos vídeos de animação no streaming, os ícones da infância mudaram de forma, mas não de função.
Continuam sendo espelhos da sociedade e moldes de sensibilidade. A cada geração, surgem novos personagens, novas trilhas, novos aprendizados.
Mas o sentimento permanece: o encantamento de ser criança, de sonhar e de acreditar que o mundo pode ser melhor.
Para Chocolate, o segredo da longevidade desses ícones e do apego emocional que ultrapassa gerações está na essência de carinho e cuidado, natural das crianças.
"A gente vai se adaptando a um novo mundo, sem perder a poesia e a magia de amar. A criança encanta. Ser criança e levar a criança dentro de você é fundamental".

