Papa Francisco: na Argentina, morte do Pontífice virou debate político
Fiéis se despediram do Papa em igrejas da capital, mas sem grandes multidões; turistas brasileiros ficaram comovidos na Catedral
Quando a morte do Papa Francisco foi confirmada, na manhã desta segunda-feira (21), dois lugares foram procurados por seus seguidores portenhos: a Catedral de Buenos Aires e a Basílica de São José de Flores, localizada no bairro de Flores, onde Jorge Mario Bergoglio passou sua infância e adolescência.
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Nesta última está o confessionário no qual Bergoglio, em 21 de setembro de 1953, "seguiu o chamamento de Deus para ser sacerdote".
Visitar ambas igrejas no dia de seu falecimento permite entender por que Bergoglio, apesar de sua gigantesca dimensão global, não foi uma figura que uniu os argentinos, pelo contrário.
Na Catedral portenha havia lugares de sobra para sentar.
Turistas estrangeiros, que não podiam acreditar na coincidência de estar no país no dia da morte do Papa argentino, se misturavam com jornalistas e fiéis locais.
Visitantes brasileiros choravam tanto ou mais do que os próprios argentinos.
Foi o caso da paulista Erica Cavalcante da Silva, de 31 anos, que expressou sua emoção com lágrimas nos olhos:
— O Papa trabalhava pelos pobres, estava sempre preocupado em ajudar. Ele inspirava fé.
Erica tinha em sua mão uma flor de papel, que recebeu na entrada da Catedral. Enquanto ela dizia o que sentia por Francisco, a argentina Ana (que preferiu não revelar seu sobrenome), a observava com atenção.
Quando Erica se retirou, Ana se aproximou da reportagem do Globo e desabafou:
— Sinto muita angústia pela reação dos argentinos. Como pode uma brasileira estar chorando assim e tantos argentinos agindo como se nada tivesse acontecido? É tudo culpa da política. O Papa deveria unido a Argentina como fez (Lionel) Messi, mas a política contaminou tudo.
Ao seu lado, seu marido, Marcelo, concordou. O casal acordou cedo e, ao saber da notícia do falecimento de Francisco, foi correndo para a Catedral.
Imaginaram, ambos, que não conseguiriam entrar pela multidão que estaria no local.
Ao chegarem, ficaram impactados com o escasso número de pessoas.
A vigília já tinha começado, mas não havia multidão alguma.
— Na Argentina, a política atrapalha tudo. Por isso o Papa nunca conseguiu vir nos ver, nunca mais voltou a seu próprio país — disse Marcelo.
Ao longo de seus 12 anos de papado, Francisco cogitou algumas vezes visitar Buenos Aires.
O fato do Sumo Pontífice nunca ter conseguido voltar à Argentina gerou ressentimento entre alguns compatriotas, como Luis, um enfermeiro que está atualmente desemprego.
Nesta segunda, ele estava com duas amigas na Praça de Maio, debatendo as razões pelas quais Francisco nunca conseguiu ser uma figura de união nacional.
— Talvez, se ele tivesse vindo, tudo seria diferente. Mas passaram os governos e ele nunca veio. A pobreza explodindo aqui e ele nunca veio. Tem gente que não perdoa isso — comenta o enfermeiro.
No dia da morte do Papa, em Buenos Aires se discutiu mais sua atuação política dentro do país do que seu legado como Francisco.
A reportagem do Globo ouviu vendedores de rua debatendo o assunto em frente à Catedral.
Os argumentos se repetiam em todas as conversas. Para alguns, a culpa foi dos peronistas.
Para outros, do ex-presidente Mauricio Macri e do atual, Javier Milei.
O ex-arcebispo de Buenos Aires acabou sendo vítima da politização da sociedade argentina.
Em Flores, o pároco da Basílica de São José de Flores, padre Martín Bourdieu, destacou a “emoção” de muitas pessoas, mas reconheceu que o fato de Francisco nunca ter voltado a seu país é “uma dívida que ele levará com ele”.
— Ele saberá por que não veio. Nós também temos que nos perguntar por que ele não veio — diz o padre, que conviveu muito com Bergoglio quando estava iniciando sua carreira na Igreja.
—Tenho as melhores lembranças, era como um pai para nós.
Em Flores, muitos dos que frequentam a Basílica conheceram o Papa, ou conhecem alguém que conheceu o Papa. A aposentada Cristina Morey é viúva de um ex-colega de Bergoglio na escola primária.
Nesta segunda, ela estava com uma amiga rezando na Basílica de Flores, segurando uma foto de Francisco.
— Lamento muito que o Papa tenha sido vítima da política argentina por suas opiniões. Muitos aqui fizeram campanha contra ele — afirma Cristina.
— Sou ativista pelos direitos humanos, e conheço Mães da Praça de Maio que foram críticas a Bergoglio. Algumas, quando ele foi escolhido Papa, foram ao Vaticano e pediram desculpas. O Papa as perdoou.
No fundo, diz a aposentada argentina, “tudo na Argentina acaba se resumindo a briga entre peronistas e antiperonistas. Como o Papa era peronista para muitos, embora ele nunca tenha admitido isso, acabou sendo vítima dessa discussão sem fim”.
Francisco era um portenho apaixonado pela sua cidade e por seu país. Amava o tango, era torcedor fanático do San Lorenzo e adorava circular por Buenos Aires.
Sua presença nas vilas miséria da cidade, onde promoveu a presença de padres da Igreja católica, os chamados “padres faveleiros”, incomodou setores de uma sociedade ainda profundamente conservadora.
Incomodou, também, governos peronistas e não peronistas.
No dia de sua morte, a resistência de diversos setores à figura de Francisco estava no ar.
A vice-presidente do país, Victoria Villarruel, conhecida por sua defesa de militares envolvidos na última ditadura (1976-1983), decidiu participar da missa em homenagem ao Papa na Basílica de Flores.
Milei, pelo contrário, não confirmou presença em missas dedicadas a Francisco, mas sim que viajará a Roma para as exéquias.
Visita de João Paulo II na memória
Nas ruas da capital de um país no qual 70% da população se declara católica, mas apenas 13% praticamente, o movimento era o de um dia normal. Sem bandeiras do Vaticano ou imagens de Francisco nas varandas.
Sem multidões nas ruas, ou em igrejas. Com colégios católicos dando aula normalmente (as atividades foram suspensas apenas na terça, dia 22).
Em conversas informais, muitos lembraram que, quando o Papa João Paulo II morreu, em 2 de abril de 2005, a Catedral portenha ficou lotada.
A Argentina foi um dos países visitados por João Paulo II, em junho de 1982. Um dos eventos mais importantes da viagem foi uma missa na Basílica de Luján, diante de uma multidão.
A Argentina estava saindo da ditadura, a guerra das Malvinas vivia seus últimos dias, e os apelos do então Papa pela paz ficaram gravados na memória de muitos argentinos.
— João Paulo II fez algo importante pela Argentina e Francisco, para muitos de meus compatriotas, não. Eu não penso assim, e me entristece. Mas acho que tudo seria diferente se ele (Francisco) tivesse vindo — diz o enfermeiro Luis.
Na Praça de Maio, a bandeira está a meia haste e o governo Milei decretou sete dias de luto nacional. O protocolo foi cumprido à risca. Mas na terra natal de Francisco, as expressões de dor e tristeza foram isoladas. Entre seus legados não estará a união dos argentinos.
Rádios e canais de TV argentinos passaram o dia informando sobre a morte do Papa e os próximos passos a seguir. Mas não foi o único assunto do dia no país.
Um apresentador da emissora de rádio La 100 deu o tom do dia na capital do país: “Hoje temos duas dúvidas: quem será o próximo Papa e quem será a próxima namorada de Milei”.
No dia em que Francisco faleceu, também foi confirmado nas redes sociais que o presidente argentino rompeu seu namoro com a ex-vedete Yuyito González.

