Prostitutas trans acolhidas pelo papa Francisco na pandemia relembram apoio do pontífice
Na primeira vez que o vi, em abril de 2022, eu disse que tinha perdido a fé, disse uma das prostitutas
Em março de 2020, três dias após todas as paróquias da Itália fecharem por causa do avanço da pandemia, Don Andrea viu uma fila de pessoas dando a volta em sua igreja em Torvaianica, um dos vilarejos litorâneos nos arredores de Roma. Muitas dessas pessoas desesperadas por ajuda eram mulheres trans que se prostituíam todos os dias a poucos metros dali. Naquele momento, elas já não tinham clientes, e o dinheiro não dava para comida ou remédios.
— Nunca tinha tido contato com nenhuma delas — disse ao El País o padre Andrea Conocchia, que ligou para o esmoleiro do Vaticano, o cardeal polonês Konrad Krajewski, e pediu ajuda.
Ao jornal espanhol, três dessas mulheres trans – as colombianas Yuliana e Diana e a uruguaia Marcela – compartilharam o que têm em comum: todas são migrantes latino-americanas, e todas vivenciaram uma relação próxima com o Papa Francisco, que viam regularmente há três anos. Agora, compartilham também um imenso pesar pela morte do Pontífice.
— Na primeira vez que o vi, em abril de 2022, eu disse que tinha perdido a fé. Ele me respondeu dizendo para eu não deixar isso acontecer, porque todos somos iguais aos olhos de Deus — contou Marcela.
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Após enfrentarem violência, maus-tratos e discriminação, as três mulheres fugiram da América Latina. Diana levou três tiros do próprio tio; Marcela fugiu da repressão policial e passou três anos em Paris antes de chegar a Roma; e, para Yuliana, Bogotá havia ficado pequena demais. Era, relembrou, uma cidade que não aceitava a diferença e nem o processo de transição que ela estava prestes a começar.
— Um amigo me falou do padre que fazia a ponte com o Papa para ajudar a comunidade LGBT, e eu decidi vir — explicou Yuliana.
A paróquia, com o apoio do Vaticano, ajudou todas as pessoas que precisaram. Aquele grupo de mulheres trans – as primeiras a aparecerem ali – pediu ao padre para agradecer pessoalmente ao Papa pela ajuda e escreveu cartas contando suas histórias. O padre Andrea, por sua vez, não conhecia o Pontífice pessoalmente, mas pediu à irmã Geneviève Jeanningros, que conhecia Francisco, para fazer a ponte até ele.
O Papa respondeu imediatamente. Ele disse: “não quero que venham quatro, mas todas”, contou Geneviève, que há 56 anos ajuda pobres, prostitutas e transexuais que trabalham nas ruas. Segundo o Movimento Identidade Transexual, estima-se que vivam na Itália entre 7 mil e 8 mil migrantes trans que se dedicam à prostituição, a maioria latino-americanas de países como Brasil, Colômbia, Equador ou Peru.
O Vaticano, com autorização expressa do Pontífice, já patrocinava vários abrigos para mulheres trans vítimas de abusos na Argentina, oferecendo apoio espiritual e financeiro. Mas a experiência em Roma começou ali, e desde então elas se encontraram quatro vezes com o jesuíta argentino – sempre nas audiências das quartas-feiras.
— Alguns colaboradores se afastavam quando a gente chegava. Mas ele (o Papa) era sempre afetuoso e divertido, adorava fazer piadas — disse Marcela. — A Igreja se abriu muito com Francisco, e muitas de nós que não tínhamos lugar encontramos acolhimento. Esperamos que, depois do conclave, seja quem for o novo Papa, tenha a humildade de continuar caminhando com os últimos e não desfaça o caminho percorrido.
Francisco, como fazia com os presos nas penitenciárias, envolveu-se silenciosamente na vida dessas mulheres. Conforme publicado pelo El País, na escrivaninha de seu escritório havia, há muito tempo, a foto de Naomi Cabral, uma transexual argentina assassinada por um cliente, estrangulada num quarto de hotel perto de Torvaianica. O Papa não queria esquecer o que muitas delas enfrentam cotidianamente.
— Muitas das nossas amigas morreram desde então. Há pouco tempo também mataram Lili, uma companheira peruana — relatou marcela. — Cravaram uma chave de fenda na nuca dela e a abandonaram no bosque onde pelo menos 40 mulheres trans trabalham. Não queremos que ela seja esquecida.
No sábado, um grupo de migrantes, pessoas trans e seis detentos que receberam permissão especial para sair da prisão receberá o caixão do Papa na Basílica de Santa Maria Maior, onde ele escolheu ser sepultado. É a despedida que ele queria.

