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ITÁLIA

Prostitutas trans acolhidas pelo papa Francisco na pandemia relembram apoio do pontífice

Na primeira vez que o vi, em abril de 2022, eu disse que tinha perdido a fé, disse uma das prostitutas

O Papa Francisco reza com padres no Vaticano, em 2020, durante a infecção por covid-19O Papa Francisco reza com padres no Vaticano, em 2020, durante a infecção por covid-19 - Foto: Filippo Monteforte/AFP

Em março de 2020, três dias após todas as paróquias da Itália fecharem por causa do avanço da pandemia, Don Andrea viu uma fila de pessoas dando a volta em sua igreja em Torvaianica, um dos vilarejos litorâneos nos arredores de Roma. Muitas dessas pessoas desesperadas por ajuda eram mulheres trans que se prostituíam todos os dias a poucos metros dali. Naquele momento, elas já não tinham clientes, e o dinheiro não dava para comida ou remédios.

— Nunca tinha tido contato com nenhuma delas — disse ao El País o padre Andrea Conocchia, que ligou para o esmoleiro do Vaticano, o cardeal polonês Konrad Krajewski, e pediu ajuda.

Ao jornal espanhol, três dessas mulheres trans – as colombianas Yuliana e Diana e a uruguaia Marcela – compartilharam o que têm em comum: todas são migrantes latino-americanas, e todas vivenciaram uma relação próxima com o Papa Francisco, que viam regularmente há três anos. Agora, compartilham também um imenso pesar pela morte do Pontífice.

— Na primeira vez que o vi, em abril de 2022, eu disse que tinha perdido a fé. Ele me respondeu dizendo para eu não deixar isso acontecer, porque todos somos iguais aos olhos de Deus — contou Marcela.

Após enfrentarem violência, maus-tratos e discriminação, as três mulheres fugiram da América Latina. Diana levou três tiros do próprio tio; Marcela fugiu da repressão policial e passou três anos em Paris antes de chegar a Roma; e, para Yuliana, Bogotá havia ficado pequena demais. Era, relembrou, uma cidade que não aceitava a diferença e nem o processo de transição que ela estava prestes a começar.

— Um amigo me falou do padre que fazia a ponte com o Papa para ajudar a comunidade LGBT, e eu decidi vir — explicou Yuliana.

A paróquia, com o apoio do Vaticano, ajudou todas as pessoas que precisaram. Aquele grupo de mulheres trans – as primeiras a aparecerem ali – pediu ao padre para agradecer pessoalmente ao Papa pela ajuda e escreveu cartas contando suas histórias. O padre Andrea, por sua vez, não conhecia o Pontífice pessoalmente, mas pediu à irmã Geneviève Jeanningros, que conhecia Francisco, para fazer a ponte até ele.

O Papa respondeu imediatamente. Ele disse: “não quero que venham quatro, mas todas”, contou Geneviève, que há 56 anos ajuda pobres, prostitutas e transexuais que trabalham nas ruas. Segundo o Movimento Identidade Transexual, estima-se que vivam na Itália entre 7 mil e 8 mil migrantes trans que se dedicam à prostituição, a maioria latino-americanas de países como Brasil, Colômbia, Equador ou Peru.

O Vaticano, com autorização expressa do Pontífice, já patrocinava vários abrigos para mulheres trans vítimas de abusos na Argentina, oferecendo apoio espiritual e financeiro. Mas a experiência em Roma começou ali, e desde então elas se encontraram quatro vezes com o jesuíta argentino – sempre nas audiências das quartas-feiras.

— Alguns colaboradores se afastavam quando a gente chegava. Mas ele (o Papa) era sempre afetuoso e divertido, adorava fazer piadas — disse Marcela. — A Igreja se abriu muito com Francisco, e muitas de nós que não tínhamos lugar encontramos acolhimento. Esperamos que, depois do conclave, seja quem for o novo Papa, tenha a humildade de continuar caminhando com os últimos e não desfaça o caminho percorrido.

Francisco, como fazia com os presos nas penitenciárias, envolveu-se silenciosamente na vida dessas mulheres. Conforme publicado pelo El País, na escrivaninha de seu escritório havia, há muito tempo, a foto de Naomi Cabral, uma transexual argentina assassinada por um cliente, estrangulada num quarto de hotel perto de Torvaianica. O Papa não queria esquecer o que muitas delas enfrentam cotidianamente.

— Muitas das nossas amigas morreram desde então. Há pouco tempo também mataram Lili, uma companheira peruana — relatou marcela. — Cravaram uma chave de fenda na nuca dela e a abandonaram no bosque onde pelo menos 40 mulheres trans trabalham. Não queremos que ela seja esquecida.

No sábado, um grupo de migrantes, pessoas trans e seis detentos que receberam permissão especial para sair da prisão receberá o caixão do Papa na Basílica de Santa Maria Maior, onde ele escolheu ser sepultado. É a despedida que ele queria.

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