Invasões de vereadores em unidades de saúde em busca de "cortes" para as redes geram reação médica
Políticos são acusados de constrangimento por supostas fiscalizações compartilhar nas redes; Justiça restringe prática em São Paulo
Incursões de políticos empunhando celulares em unidades de saúde têm motivado reações da classe médica, que se vê insegura diante das ações divulgadas nas redes sociais.
No mês passado, um paciente de 93 anos morreu no município de Felício dos Santos (MG) após o vereador Wladimir Canuto (Avante) invadir a sala vermelha da Unidade Básica de Saúde (UBS) onde ele recebia atendimento de emergência.
À polícia, uma médica disse que Canuto “agiu com extrema arrogância e desleixo quanto ao risco do paciente, o que desestabilizou a equipe”.
O parlamentar negou que tenha invadido a sala ou agredido qualquer profissional. Segundo o vereador, havia pessoas esperando por atendimento há quase três horas. Ele teria flagrado um médico mexendo no celular na unidade:
"Sou fiscal do município. O salário que todos os funcionários da prefeitura recebem, eu fiscalizo. Tenho que ver se merecem", argumentou em vídeo postado nas redes.
O Brasil tem cerca de 600 mil médicos, dos quais quase um terço está em São Paulo.
O Conselho Regional de Medicina do estado (Cremesp) editou em fevereiro uma circular que orienta as unidades de saúde a proibirem a entrada de vereadores em áreas privativas e a chamar a polícia diante de negativas, além de registrar boletim de ocorrência.
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‘Vontade de chorar’
Uma médica da capital paulista, que prefere não se identificar, diz ter sido demitida após a ação de um político no hospital municipal onde atendia.
Ela havia trabalhado 13 dias seguidos, incluindo Natal e Ano Novo, até ser surpreendida em seu consultório em 3 de janeiro devido a queixas de uma paciente que, segundo a médica, foi chamada três vezes sem ser encontrada na sala de espera:
"Ele veio gritando, fazendo um escândalo e filmando a tela do meu computador e meu rosto sem que eu autorizasse. A gente não trabalha como máquina, temos direito a dez minutos de descanso. Me senti constrangida, coagida, com vontade de chorar", disse.
Em Guarulhos (SP), o Cremesp acionou a Justiça Federal contra o vereador Kleber Ribeiro (PL) após vídeos com o mesmo pretexto de Canuto, o de supostamente expor a ineficiência nos hospitais.
A entidade alegou que Kleber age “cercado de seguranças e utilizando colete a prova de balas, com postura nitidamente intimidatória” e “coloca a população contra os médicos”, estimulando “ambiente hostil”.
Em fevereiro, a juíza federal Letícia do Rêgo Barros decidiu que as ações do vereador “transbordam os limites de suas prerrogativas” e impôs restrições às incursões, proibindo porte de arma de fogo ou presença de mais de um assessor, sob pena de multa de R$ 50 mil.
Ao Globo , o vereador se disse “perseguido” pelo Cremesp e avisou que não pretende parar: "O intuito não é banalizar a imagem de médicos ou funcionários de saúde. É responsabilizar os maus profissionais", disse.
Episódios semelhantes têm se tornado comuns, conta Antonio José Gonçalves, presidente da Associação Paulista de Medicina (APM).
Um dos pioneiros desse expediente foi o ex-vereador do Rio Gabriel Monteiro, que ganhou projeção digital com supostas fiscalizações e, em dezembro de 2024, foi condenado por abuso de poder. Ele teve o mandato cassado em meio a acusações criminais e está preso.
A APM criou um canal para denúncias contra parlamentares que pratiquem intimidação. Os casos serão analisados pelo corpo jurídico do órgão.
"Está havendo uma invasão de parlamentares que atrapalham atendimentos de maneira violenta, se promovendo às custas de um desserviço à população. Nosso sistema de saúde é falho, mas o médico da linha de frente não pode ser o bode expiatório que recebe toda a ira", afirma Gonçalves.

