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QUASE AMIGOS

Relações parassociais: entenda os laços unilaterais com quem nem sabe da sua existência

Sensação de proximidade com pessoas distantes - especialmente aquelas que estão do outro lado da tela - molda conexões emocionais cada vez mais

Homem mexendo em celular em quarto escuroHomem mexendo em celular em quarto escuro - Foto: Freepik

No aniversário da chegada do homem à Lua, neste domingo (20), comemora-se, no Brasil e em outros países, o Dia do Amigo. A data foi proposta pelo argentino Enrique Ernesto Febbraro, que interpretou o "grande salto para a humanidade" como um gesto de amizade da Terra para com o Universo.

E por falar em amigo Você talvez tenha um amigo que nunca viu, que não sabe seu nome, que jamais trocou uma mensagem com você no WhatsApp, mas mesmo assim você se sente íntimo dele. 

Esse amigo pode ser um jogador de futebol, uma diva pop, um youtuber ou uma influenciadora que você gosta de acompanhar e não perde um story no Instagram. Pode até ser um personagem de uma série ou um apresentador de televisão. 

E você sente que entende essa pessoa como ninguém. Você acha que sabe de tudo o que ela pensa e do que ela gosta. E se alguém falar mal dela então? Você tem pronta uma série de argumentos para defender o seu (quase) amigo.

Em 1956, os sociólogos Donald Horton e Richard Wohl cunharam um nome para essa sensação de proximidade: estamos falando das relações parassociais.

Etimologicamente falando, "parassocial" é uma palavra formada pelo prefixo grego "para-", que quer dizer "ao lado de", e pelo latim "socialis", que significa companheiro ou aliado.


Uma relação parassocial pode ser definida como um laço emocional unilateral que é formado por uma pessoa real e uma figura midiática, alguém que está sempre ali ao alcance de um clique no celular ou mesmo na programação da televisão.

Em 2023, o Dicionário de Oxford colocou parassocial na corrida pela palavra do ano o termo, no entanto, perdeu para "rizz" (gíria originada na internet que significa algo como "carisma" ou "charme"). A publicação britânica assim resume o significado de parassocial:

"Designa um tipo de relacionamento caracterizado por um sentimento unilateral e não recíproco de intimidade sentido por um espectador, fã ou seguidor em relação a uma figura conhecida ou proeminente (geralmente uma celebridade da mídia), no qual o seguidor ou fã passa a sentir (falsamente) que conhece a celebridade como um amigo" 

Recentemente, por conta do episódio da morte de Juliana Marins em um vulcão na Indonésia, usuários das redes atribuíram o termo à relação entre internautas brasileiros e o alpinista local que conduziu a missão de resgate do corpo da jovem.

"Queria entender como é tão fácil um país inteiro criar relações parassociais com qualquer pessoa a qualquer momento", publicou @flashcosmos no X, ao citar a vaquinha que foi organizada para ajudar o alpinista Agam, que chegou a arrecadar mais de R$ 500 mil.

De onde vem esse laço invisível que aparenta unir esses quase amigos? 
Nos anos 1950, quando Horton e Wohl definiram as relações parassociais, e nas décadas seguintes, elas estavam intrinsecamente ligadas a figuras como apresentadores de televisão ou personagens de filmes, novelas ou séries.

Professora do campus Agreste da UFPE, Marianny Silva destaca detalhes das relações parassociais | Foto: Arquivo Pessoal

A professora do Programa de Pós-graduação em Gestão, Inovação e Consumo do Campus Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marianny Silva ressalta que é interessante pautar a definição das relações parassociais a partir dessa perspectiva histórica da definição do conceito. 

"Trabalhamos muito com relação parassocial hoje na análise de mídias digitais. Os autores começaram a analisar a sensação de proximidade que o público sentia com personagens de programas de televisão. Eles descobriram que os espectadores começavam a interagir com os apresentadores, como se fosse uma interação real e denominaram essa sensação unilateral, essa ilusão de intimidade como relação parassocial", explica Marianny, que atua em pesquisas sobre comportamento do consumidor, mídias sociais, grupos de referência, sacrifício e influenciadores virtuais.

"A partir desse estudo pioneiro [de Horton e Wohl], foi-se observando que, muitas vezes, os espectadores sentem como se determinadas celebridades fizessem parte desse círculo de amigos e que existe uma ilusão de interação recíproca. Então, essa relação parassocial é justamente essa ligação emocional e íntima com alguém que na verdade pode nem ter conhecimento da existência daquele que desenvolve essa relação", completa.

Marianny Silva ainda desmembra e diferencia os conceitos de interação e relação parassocial.

"A interação parassocial é uma atividade mais momentânea que pode, por exemplo, desencadear uma relação parassocial. Quando a gente fala de relação parassocial, estamos falando dessa ilusão de intimidade como algo contínuo", explica. 

Aqui no Brasil, por exemplo, pense em grandes nomes midiáticos como Silvio Santos, Xuxa e Hebe. Eles estavam ali, sempre naquele horário e naquele dia, naquele mesmo canal, entrando na casa das pessoas por meio do sinal de televisão. 

Com olhar fixo para a câmera e frases direcionadas para o público, faziam os telespectadores se sentirem parte daquele universo mágico, daquela "caixinha colorida". Era essa ilusão de intimidade criada unilateralmente que forjava a relação parassocial. 

o patrimônio do comunicador Silvio Santos, que partiu em agosto de 2024, é de R$ 6,4 bilhõesCom programa de várias horas aos domingos, Silvio Santos era bastante queridos pelos telespectadores | Foto: Lourival Ribeiro/SBT

Relações parassociais: quais as características?
Marianny Silva enumera as características das relações parassociais. Segundo a professora, entre os traços desses laços estão:

Unilateralidade: a relação é sentida por apenas um dos lados. A figura pública não tem conhecimento do indivíduo, não há reciprocidade.

Ilusão de intimidade: é o sentimento que é gerado nesse tipo de relação. "O indivíduo vai desenvolvendo a partir do momento que vai tendo 'contato' com a celebridade nos programas de TV e hoje nas mídias sociais por meio das postagens, dos stories, de todo esse aparato informacional que temos", detalha Marianny. 

É por causa desse sentimento que o quase amigo desenvolve um "investimento emocional".

"A gente vai dedicar tempo, energia e atenção a essa figura pública. No caso dos influenciadores, por exemplo, é seguir, estar sempre tentando interagir com curtidas, com comentários, compartilhar o que diz e até elementos mais profundos de comportamento mesmo: mudança do estilo de vida, compras, atividades de consumo condizentes com o que o influenciador vivencia ou que ele indica", acrescenta a professora. 

Atribuição: o indivíduo atribui para si certas características dessa figura pública, muitas vezes baseada na interpretação que faz, do simbolismo e dessa relação que vai sendo construída e fortalecida. 

Frequência e consistência: um dos elementos que diferencia relação de interação parassocial. "Temos uma busca contínua por essa celebridade", exemplifica Marianny. 

Relações parassociais são saudáveis?
A Folha de Pernambuco também conversou com a psicóloga Rafaella Silveira, formada em Terapia Cognitiva Comportamental, para entender os benefícios e os malefícios dessa prática.

Formada em Terapia Cognitiva Comportamental, a psicóloga Rafaella Silveira elenca pontos positivos e negativos das relações parassociais | Foto: Arquivo Pessoal

Para a profissional, é importante reconhecer que esses vínculos unilaterais não são necessariamente patológicos.

"[Os vínculos] podem ser saudáveis quando oferecem inspiração, motivação e apoio à construção da identidade, especialmente na adolescência. E tornam-se prejudiciais quando substituem relações presenciais, geram dependência emocional ou ilusões de reciprocidade. Isso reflete em uma sociedade que enfraquece os laços coletivos e favorece conexões frágeis e individualizadas. Não são, por si só, negativas, mas exigem atenção crítica", pondera Rafaella. 

A psicóloga também explica que as relações parassociais podem oferecer ao indivíduo sensação de pertencimento e acolhimento

"Para algumas pessoas, especialmente as que enfrentam dificuldades sociais ou vivem em isolamento, as relações parassociais podem funcionar como um substituto temporário das relações reais. No entanto, diferentemente dos vínculos recíprocos, elas são simuladas, baseadas na imaginação e no conteúdo midiático, sem espaço para diálogo ou troca real", completa a profissional. 

Rafaella Silveira ainda elenca quando existem benefícios nesse tipo de interação: quando os vínculos funcionam como "fontes simbólicas de apoio emocional, inspiração e construção de identidade".

"Psicologicamente, essas relações parassociais podem oferecer conforto em momentos de solidão ou vulnerabilidade, proporcionando uma sensação de companhia, estilo de vida e acolhimento, mesmo que não haja reciprocidade real.  É importante que não substituam as conexões interpessoais recíprocas e autênticas, pois a unilateralidade das relações parassociais limita a profundidade e o impacto real do vínculo na vida emocional do indivíduo", acrescenta. 

A professora Marianny corrobora o que pode ser entendido como positivo ou negativo no contexto das relações parassociais. Em um contexto positivo, ela diz que pode gerar suporte emocional ao seguidor e também uma perspectiva de prazer pela conexão

"Mas também pode levar a comportamentos de obsessão, comportamentos prejudiciais, mimetismo excessivo que não corresponde a sua realidade, podendo levar ao endividamento, até a gente chegar a casos mais extremos vinculados a perseguir a figura pública", detalha. 

O mimetismo pode ser definido como uma tendência das pessoas de imitaram - incoscientemente ou conscientemente o comportamento, expressões faciais, gestos e até mesmo a fala de outras pessoas. 

Quando a relação parassocial começa a ser nociva?
A psicóloga Rafaella Silveira diz que uma relação parassocial começa a se tornar obsessiva ou nociva quando deixa de ser uma identificação simbólica e passa a comprometer a vida emocional e social da pessoa.

"Um dos primeiros sinais é o isolamento crescente, quando o indivíduo começa a substituir vínculos reais por interações unilaterais com figuras da mídia, o que pode reforçar sentimentos de solidão e dificultar o desenvolvimento de habilidades relacionais. Outro indicativo é a idealização extrema, marcada pela incapacidade de enxergar falhas na figura admirada ou de tolerar críticas a ela", pontua a profissional.

Em casos mais críticos, acrescenta Rafaella, o "quase amigo" pode ter dificuldade em reconhecer que a relação é unilateral, e não uma amizade verdadeira, o que, defende ela, reforça uma ilusão de intimidade e pertencimento.

"Estudos confirmam que esses sinais estão associados a quadros de ansiedade, distorção da autoimagem, baixa autoestima e comportamentos compulsivos, principalmente entre jovens e pessoas emocionalmente vulneráveis. Em resumo, a obsessão nas relações parassociais não está apenas no tempo de exposição, mas no grau em que esse vínculo interfere na realidade, nas emoções e nos relacionamentos autênticos", completa a psicóloga.

Para Marianny Silva, as relações parassociais refletem a sociedade do espetáculo, termo definido pelo sociólogo Guy Debord.

"Essas relações parassociais são um reflexo dessa cultura que temos do espetáculo, da exposição, da valorização dessas figuras especialmente nesse meio digital, onde a imagem da persona é mais importante do que a pessoa real". 

Persona é uma representação semifictícia do público ideal de uma marca, baseada em dados reais e comportamentos observados. Esse conceito reúne características como idade, profissão, interesses, desafios e motivações, ajudando empresas e criadores de conteúdo a direcionar melhor sua comunicação e estratégias de marketing.

 

Por dia, brasileiros usam a internet mais de nove horas, segundo pesquisa de empresas especializadas | Foto: Viralyft/Unsplash      

O papel das redes sociais nas relações parassociais
As relações parassociais nasceram na TV, mas explodiram no Instagram, TikTok e YouTube. O passar dos anos, inclusive, fez a televisão dividir esse espaço nas relações com a internet e as redes sociais.

Brasileiros passam, em média, 9h09 por dia na internet, sendo 3h32 em redes sociais, segundo dados do Relatório Digital 2025produzido pela agência de marketing We Are Social em parceria com a empresa de inteligência de mídia Meltwater. 

E, por isso, a lógica cunhada nos anos 1950 mudou, mas o vínculo permanece essencialmente unilateral

Atualmente, influenciadores e criadores de conteúdo não apenas falam com o público, mas também se mostram vulneráveis. Eles compartilham diariamente momentos íntimos, choram diante da câmera do celular, desabafam e revelam traumas e alegrias. 

Essa equação causa uma identificação ainda maior do público, mesmo que este seja nichado e limitado a uma parcela de seguidores.

A sensação de proximidade existe mesmo quando não há uma reciprocidade ou interações mútuas como acontece em amizades reais, sejam elas do mundo on ou off-line.

Especialistas alertam, por outro lado, que essa dependência de relacionamentos parassociais pode levar a sentimentos como solidão, decepção ou expectativas irreais, sobretudo quando o famoso ou personalidade da mídia age de uma maneira inesperada.

Marianny Silva defende que, apesar do termo ter sido criado em 1956, não é possível desconsiderar que, de fato, as redes sociais mudaram a forma de como as pessoas se relacionam, sobretudo pela possibilidade de se comunicar livremente. 

"A partir desses ambientes digitais, certas dinâmicas sociais começam a ser reestruturadas, remodelando redes, esses laços entre os indivíduos. Dessas dinâmicas, a gente tem um novo ator que emerge, que é o influenciador digital, que passa a ser visto como uma das principais figuras nesse meio digital a ser considerado como um agente que pode gerar, a partir dos seus seguidores, essa relação parassocial nos indivíduos", pondera a professora da UFPE.

A profissional ainda pontua que os próprios influenciadores nos tempos atuais geram estratégias para desenvolver essas relações parassociais.

"Essas celebridades virtuais se apresentam ao público de uma forma muito espontânea, dirigindo-se aos seus seguidores como amigos por meio de bate-papos, conversas e relatos, mostrando seu dia a dia e transformando os perfis em verdadeiros realities shows. Por meio da construção dessa relação, forma-se essa sensação de intimidade que vai levar o seguidor a se identificar com o influenciador em transformá-lo tanto em uma referência que vai influenciar nas decisões de consumo e tantas outras, de escolhas de modo de viver, de se comportar, como considerá-lo um amigo", completa Marianny Silva. 

A professora afirma que as relações parassociais revelam que os membros da nossa sociedade buscam fazer parte de algo, de um grupo, de pertencer, de se identificar.

"As relações parassociais levam, de certa forma, a um deslocamento das relações tradicionais", arremata.

Isso, diz Marianny, pode enfraquecer laços sociais mais próximos e fortalecer aquelas geograficamente distantes, mas que se tornam próximos por conta de todo esse contexto. 

E será que poderia haver uma substituição completa das interações reais pelas parassociais no convívio entre os indivíduos? Para Marianny Silva existe, sim, uma tendência parcial desse tipo de troca nos meios digitais.

"Especialmente para lidar com esses sentimentos de solidão, de isolamento", finaliza a professora. 
 

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