Dom, 21 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
pastor

"Pastores estão com medo de questionar qualquer coisa", diz presbiteriano demitido

O acadêmico e pastor Valdinei Ferreira, há 33 anos na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (PIB) e crítico da instrumentação política da religião, só retomou seu posto em faculdade de teologia após pressão de alunos

O pastor Valdinei Ferreira: resistir ao autoritarismo que contaminou as igrejas evangélicas sem discurso de ódio O pastor Valdinei Ferreira: resistir ao autoritarismo que contaminou as igrejas evangélicas sem discurso de ódio  - Foto: Divulgação

Na Semana Santa e nos dias que se seguiram aos feriados religiosos, o pastor presbiteriano Valdinei Ferreira viveu um calvário. Foi cancelado nas redes sociais por cristãos furiosos e demitido da faculdade de teologia onde dava aula há 25 anos. Dias depois, devolveram-lhe o emprego. Tudo começou na véspera da Sexta-Feira da Paixão, quando Ferreira publicou, no jornal Folha de S.Paulo, o artigo intitulado “Judas traiu Jesus ou Jesus traiu Judas”.

Nele, não questionava a narrativa bíblica, mas apresentava a interpretação do teólogo francês Jean-Yves Leloup: Judas teria entregue Jesus aos romanos por acreditar que, se fosse preso, ele se revelaria como o messias libertador dos judeus submetidos ao Império.

Ferreira terminou o texto com um alerta: “É preciso ter cautela com visões políticas que se baseiam em certezas religiosas absolutas sobre o bem e o mal”.
 

O pastor conta que o título do artigo foi espalhado nas redes sociais por Filipe Sabará, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social na gestão João Doria e hoje aliado de Pablo Marçal. Insinuava que Ferreira estava defendendo Judas. O Globo viu um dos posts no perfil do ex-secretário em que ele classificava o texto de "absurdo" e destacava a data de publicação, "às vésperas da Páscoa".

Assim teve início um linchamento virtual, capitaneado pela ala conservadora da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), na qual Ferreira serve como pastor há 33 anos. Tanto a diretoria da Igreja quanto a da Fundação Carlos Eduardo Pereira, mantenedora da Faculdade de Teologia da denominação, a Fatipi, começaram a ser pressionadas.

No dia 23, Ferreira foi demitido. Ao Globo, o pastor contou que a dispensa foi sem justa causa e que soube extraoficialmente que o artigo fora o motivo. Ele é um crítico contumaz da instrumentalização política da religião, mas nunca havia sido perseguido por suas opiniões. Desde 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro (PL) para a Presidência, “o clima piorou muito” na Igreja, diz ele.

— Os pastores estão com medo de questionar qualquer coisa, de pedir mudança. A simples menção a temas sociais, como minorias, condição da mulher ou questões comportamentais, já coloca alguém como suspeito, alvo de vigilância. Você é imediatamente carimbado como uma pessoa de esquerda, que não tem fé, não segue a Cristo — explica o pastor.

Pressão ideológica é maior nas igrejas históricas
Doutor em sociologia pela USP e autor de 14 livros sobre espiritualidade e fé cristã, Ferreira percebe que, ao contrário do que supõe o senso comum, pouco familiarizado com o meio evangélico, o bolsonarismo tende a ser mais forte nas igrejas protestantes históricas (como as presbiterianas e as batistas, por exemplo) que nas pentecostais e neopentecostais.

— A argumentação que o cristianismo perdeu espaço na cultura, na política e na sociedade, e que devemos recuperá-lo, colocando a Bíblia nas escolas e aprovando leis para influenciar a moralidade, é feita principalmente em igrejas históricas de classe média — diz ele. — Nessas igrejas, a adesão à extrema direita é mais ideológica e justificada teologicamente do que nas igrejas pentecostais e neopentecostais.

A dispensa de Ferreira da faculdade de teologia foi questionada por lideranças da IPIB e pelos alunos da instituição, que, em protesto, fizeram uma paralisação no dia 29 de abril. Passado o feriado do Dia do Trabalhador, a demissão foi cancelada. Segundo o pastor, a justificativa foi a de que ele "está a apenas 18 meses de se aposentar".

— Entendo que foi um modo de voltar atrás sem tocar no motivo da demissão — afirma. — O apoio de pastores, presbíteros e alunos foi fundamental para que me readmitissem. Não contavam que existe uma parcela significativa da Igreja que conhece meu trabalho pastoral e teológico e protestaria contra essa arbitrariedade.

O Globo procurou tanto a Fatiti quanto a Fundação Carlos Eduardo Pereira por telefone e e-mail, mas não houve retorno até a publicação deste texto.

"Falta clareza ao governo Lula"
— Acredito que é possível resistir ao autoritarismo político que contaminou as igrejas evangélicas, mas isso deve ser feito na linguagem de amor e não com a adoção do discurso de ódio — afirma Ferreira. — Não podemos aceitar que quem não é fundamentalista ou bolsonarista seja tratado como menos cristão, menos crente, menos piedoso. Eles não têm o monopólio da verdade, Deus não é propriedade deles.

Em 2022, Ferreira engrossou atos de lideranças evangélicas em apoio à candidatura de Lula. Ele não acha que o governo “ignore” o segmento.

— Mas falta clareza ao governo sobre como dizer aos evangélicos qual é o papel do Estado sem aceitar as premissas do bolsonarismo, que levou a religião para dentro dos governos. Não sei qual seria uma metodologia apropriada para o diálogo. Não é o papel de um presidente, de um governador, inaugurar igrejas, por exemplo. Muitas vezes o diálogo que se pede do governo é justamente essa instrumentalização política da religião.

Veja também

Newsletter