Comida afetiva é tendência na cozinha
A nostalgia que você sente quando prova alguns alimentos é a sensação que os restaurantes também querem despertar nos salões
Nenhuma pesquisa na internet é capaz de trazer a receita do jeitinho que a nossa mãe fazia. Essa é especial. Difícil até definir qual é. Se você puxar pela memória, encontrará aquele prato com gosto de casa e nem mesmo o mais estrelado restaurante no mundo consegue oferecer igual. O campo afetivo é exigente, pode começar pelo cheiro, descambar pelo tempero e trazer lembranças que só aquela pessoa viveu. Razão para os cozinheiros de hoje relerem os antigos cadernos de receita, em nome do conforto que se perdeu no imediatismo atingido pelo raio das produções artificiais.
Essa carência, no bom sentido, é tópico importante no estudo “Taste Charts 2019 Latam”, lançado pela empresa irlandesa Kerry, que desenvolve soluções para a indústria alimentícia no mundo. O levantamento feito com números de venda e tendências de consumo em países como México, Costa Rica e Brasil diz que muito ainda vai mudar quando se fala em hábitos alimentares nos próximos meses. A começar pelo maior interesse nos chamados sabores autênticos, caseiros e que remetem aos tempos de infância.
Ainda segundo os criadores da pesquisa, os sabores de leite condensado e chocolate, por exemplo, estão com tudo nessa tendência. No Brasil, 57% dos entrevistados dizem que os produtos de antigamente são melhores que os disponíveis hoje, revelando a nostalgia de uma vida mais simples e essencialmente doce. Além da segurança de se transportar para uma época como a infância, quando a proteção dos pais e o convívio dos amigos é intenso, o psicólogo e analista comportamental Spencer Júnior destaca que outros prazeres também eternizam a experiência à mesa. “Muito mais que ingerir a saborosa macarronada da mãe, num dia de domingo, há o encontro com as pessoas que se ama, a conversa solta e a troca ritualística”, explica.
Um exemplo dado por Spencer é a ceia natalina, cujo sabor começa bem antes da primeira garfada. “Aquele contato alegre com a família acaba tendo um impacto ainda mais apetitoso ao encontro, assim como no jantar entre casais em que a comida é parte do momento”, completa. Para ilustrar melhor, a animação da Pixar, Ratatoullie, tem uma cena em que o rigoroso crítico gastronômico se desarma diante do prato semelhante ao que degustava quando criança. Era a receita homônima do filme, típica da Provença, na França, à base de legumes cozidos. No mundo real poderia ser qualquer outra comida com o poder de reconfortar. Nordestinos lembrarão do feijão temperado com cominho, da canja quente de galinha e, mais ainda, das produções à base de milho na época junina.
Serviço com nostalgia
Segundo a professora e pesquisadora de gastronomia Lourdes Barbosa, o poder de ativar lembranças tem levado os novos restaurantes a uma produção de menos sofisticação e mais acessibilidade. “Com a pós-modernidade, surge um novo conceito. A simplicidade passa a ser luxo. A ostentação está caindo de moda e ser chique é ser simples”, aponta. Dentro da estética menos afetada, o afago vem no conjunto da obra. “É criar uma relação de acolhida. Formar o ambiente, a música e uma série de experiências para levar ao tempo da casa da avó”.
Como boa paraense, suas memórias estão ligadas à mesa e à infinidade de pratos típicos do Norte. “Minha mãe e avó faziam três ou quatro pratos diferentes entre carne de boi, peixe e porco. Mas não podia faltar feijão e carne guisada com legumes. Além disso, minha avó fazia um rosbife espetacular fritado numa panela de ferro. A farofa, então feita com muita manteiga, era clássica”, destaca.
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Comfort food
A forma universal de mencionar esse alimento é pelo termo comfort food ou, literalmente, comida com conforto. Na prática, é como sentar numa mesinha da Chá com Chita, na Zona Norte do Recife, e sentir que o tempo deixou de ser caótico. O enxoval clássico recebe as produções da cozinha com ênfase na receita de bolos produzidos pela família de Fátima Mendonça, que há dez anos recebe seus clientes ao lado da filha Amanda.
Com a sensibilidade de quem vivenciou o banco de leite do Recife, Fátima acomoda os visitantes como uma mãe atenta. No cardápio, seu carro-chefe é o tradicional bolo de laranja, de massa fofinha e calda cítrica feita da própria fruta. Receita da avó Anita, que nunca deixou de ser o xodó do menu. “Antigamente, não tínhamos carne dentro de casa, porque era caro, mas tínhamos esse bolo, que nos trazia conforto”, recorda. As receitas da família estão todas anotadas e revelam bolos sem leite, feitos com manteiga e muitas doses de dedicação. “Costumo dizer que, quem prova uma comida boa, não tem pensamentos ruins. Por isso, esse é o meu maior presente para as pessoas. Faça o teste. No dia de muito aperreio, uma receita afetiva é como um colo que acolhe e diz: vai passar”, sugere esperançosa. Não à toa, o cardápio seguiu os últimos anos com raríssimas alterações. Oferece chá da tarde, salgados e outros doces para recordar.
São lembranças que os clientes do vendedor Daniel Viana, de 26 anos, sentem a cada mordida no seu doce japonês. O tabuleiro circula diariamente pelo Bairro do Recife e, segundo ele, boa parte do público já tem seus cabelos brancos. “Eles chegam sorrindo. Acho que lembram coisas boas”, resume. O quebra queixo, daqueles cortados na faca, tem doses altas de açúcar, coco e amendoim. Combinação imbatível, que até o fim dos anos 1990 era anunciado com apito pelos bairros. “Meu pai era um deles e foi de quem aprendi a receita”, diz orgulhoso.


