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Livro Assucar, de Gilberto Freyre, completa 80 anos

Há oito décadas, o livro Assucar era lançado com a força de uma obra que iniciou os estudos sociológicos no Brasil a partir da alimentação

Primeira edição do livro AssucarPrimeira edição do livro Assucar - Foto: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco

Quando o sociólogo Gilberto Freyre diz que “sem açúcar não se compreende o homem do Nordeste”, ele coloca o ingrediente como agente poderoso na formação de identidade. O trecho está no livro “Assucar”, lançado em 1939, cujo texto foge das análises complexas para dar luz ao cotidiano em meio à monocultura da cana-de-açúcar. Trabalho que completa 80 anos com o status de primeira análise sociológica no Brasil feita a partir da alimentação.

Faz isso com a ajuda das receitas que carregam história, enquanto fascinam à mesa. “A receita de doce é quase que só arte”, diz o autor numa das páginas, atento ao valor simbólico da produção ainda dos tempos de colônia, quando Pernambuco era um grande produtor de açúcar, entre os séculos 16 e 19. Insumo base de delícias preparadas pelas cozinheiras das casas-grandes, misturando gostos e técnicas de influência portuguesa, africana e indígena. Ele demonstra essas referências em capítulos como ‘Alguns bolos’, ‘Alguns sorvetes’ e ‘Alguns doces’. Todos com preparações de memória afetiva, executadas com adição de ingredientes locais, como as frutas da região, passando pelas especiarias exóticas da época. Eis a nossa doçaria.

De um jeito próprio, o escritor induz que não se come apenas com a boca, mas com todo o corpo através de rituais e atitudes típicas. O Nordestino e, especificamente o pernambucano, já tinha manias naquela época. Imagine, por exemplo, cultivar o simples hábito de cortar o papel de seda para cobrir tabuleiros de doces - alguns para comer diretamente com as mãos, outros colocados sobre a elegância das mesas forradas com tecido de linho. Era a vida cotidiana sendo documentada.


Legado gastronômico
Segundo o secretário de Cultura do Estado, Gilberto Freyre Neto, “Assucar” quebra o antigo costume dos segredos de família. “As receitas eram tradições guardadas e controladas pelas matriarcas. Na hora em que o escritor quebra o segredo e expõe essa produção tradicional, com a devida autorização, transforma um sigilo em patrimônio de uma sociedade. Pois, naquela época, ter bolos e doces com nome e sobrenome era uma referência familiar”, observa.

Por mais que oito décadas separem a obra original dos dias atuais, seus textos dão a chance de revisitar tradições. “Essa obra é para Pernambuco um referencial da perpetuação da identidade cultural”, diz o secretário. Para ele, na gastronomia, como em outras áreas, o que gera continuidade não é exatamente o registro, mas o uso. “Embora tudo esteja muito bem descrito, os ingredientes vão mudar, o tempo de cozimento será outro e a estrutura ferramental terá novos usos. Também não vai se usar tantos ingredientes como naquela época. Mas a beleza por trás do livro é que ele induz você a produzir o que está registrado e, em cima disso, há a manutenção básica do conhecimento imaterial”, defende.

Bolo Souza Leão é receita tradicional pernambucana

Bolo Souza Leão é receita tradicional pernambucana - Crédito: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco

Memórias de família
“Assucar” está entre os poucos livros que a chef Cláudia Freyre levou do Recife para a sua casa em Portugal, há dois anos. A sobrinha-neta do autor enxerga na obra uma extensão importante da própria família ao mesmo em que se torna um referencial da história. “Sempre gostei de conhecer a origem de cada ingrediente, seu percurso até a chegada à mesa e, a partir disso, adaptar para novas receitas”, detalha com a noção de quem seguiu o trabalho no ramo da doçaria.

“Depois que vim morar em Portugal, fiquei mais ligada na nossa mesa e entendendo de onde ela surgiu. Por aqui, você vê o início do bolo de rolo, que não chega a ser aquele fininho, mas nota de onde ele surgiu, bem como os vários doces com ovos. Muitos estão no livro e eu adoro ler como se tratasse de um romance, porque essas receitas me fazem imaginar como era cozinhar naquela época, quando se fazia o próprio leite de coco e se media em pires e não em xícara”, aponta. Entre os seus capítulos preferidos está a receita do bolo de rolo feito por sua avó. “Lembro a paciência que ela tinha e que não existe mais hoje, como fazer a própria goiabada e assar tabuleiro por tabuleiro, camada por camada”.


Fonte de pesquisa
Na época em que a primeira edição foi lançada, no final da década de 1930, um homem reunir receitas, falar de utensílios e dos vários hábitos alimentares dentro e fora de casa parecia uma afronta. Mais ainda por se tratar do autor de “Casa-Grande & Senzala”, cuja expectativa girava em torno de outras teorias. Era uma atitude corajosa, à frente do próprio tempo, que deixa lições nos dias de hoje.

Para o gastrônomo e historiador Frederico Toscano, Freyre será sempre uma referência de pesquisa em termos de cultura e alimentação. “Uma das coisas que me preocupei em fazer na dissertação que virou o meu livro ‘À Francesa’ foi investigar com olhar crítico as suas obras. A gente percebe que elas são importantes e essenciais. É um trabalho de vanguarda para a época, mas, ao mesmo tempo, com ideias tradicionalistas”.

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No texto sobre os 80 anos do livro, publicado no seu blog Brasil Bom de Boca, o antropólogo Raul Lody diz que o consumo de doce em diferentes momentos da vida merece destaque para aquela com base feita de trigo, ovos, leite e açúcar. “O nosso tão estimado bolo. Muitas variações atestadas nas receitas; muitas que nós conhecemos, pois estão na formação dos nossos hábitos alimentares, na construção dos nossos paladares de brasileiros. O livro é uma verdadeira celebração aos bolos, quando o autor mostra mais de 50 tipos diferentes de bolos tradicionais de Pernambuco”, reforça, ao citar produções típicas como bolo de rolo, bolo Souza Leão, bolo de milho D. Sinhá, bolo de bacia à moda de Pernambuco, entre outros.

Exposição reúne enxoval que comemora o livro Assucar

Exposição reúne enxoval que comemora o livro Assucar - Crédito: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco

Não menos importante, os doces feitos com frutas tropicais também mereceram espaço. “A marmelada, o caju e a goiabada tornaram-se desde os tempos coloniais, os grandes doces das casa-grandes. A banana assada ou frita com canela, uma das sobremesas mais estimadas das casas patriarcais, ao lado do mel de engenho com farinha de mandioca, com cará, com macaxeira; ao lado do sabongo [doce de coco com o mel de engenho] e do doce de coco verde e, mais tarde, do doce com queijo – combinação tão saborosamente brasileira”, diz mais um trecho de “Assucar”.

Pode dentro da obra
Para conhecer mais “Assucar”, eventos no Recife reforçam a importância do seu texto na cultura pernambucana. Um deles é a exposição homônima do livro, em cartaz até o final de junho, no Museu do Homem do Nordeste, em Casa Forte. Também na agenda, a Academia Pernambucana de Letras comemora neste sábado os 80 anos da publicação com presença da pesquisadora, Lecticia Cavalcanti. Ela, que ocupa a cadeira na Academia Pernambucana de Letras que já foi de Freyre, faz o convite na sua coluna deste fim de semana (pág 8).

Saiba mais
A primeira edição do livro tem 166 páginas e foi lançada pela editora José Olympio

Na época, houve quem dissesse que o autor de “Casa-Grande & Senzala” era um sociólogo de alfenin – doce preparado à base de clara de ovo e açúcar

Na introdução de abertura do livro, Freyre destaca a frase de Machado de Assis que diz: “um manual de confeitaria só pode parecer vulgar a espíritos vulgares”

O livro está em sua 5ª edição (2012), com 272 páginas, lançada pela editora Global, com média de preço de R$ 35

 

 

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